Caricaturas – parte 2

conquista
Nesta controvérsia, a propósito das palavras de Bento XVI na Universidade de Ratisbona, somos nós os verdadeiros ofendidos. Aplicando-se este «nós», bem entendido, a todos os que defendemos o carácter absoluto e inalienável das liberdades de opinião e de expressão. Neste caso, no terreno do debate teológico e filosófico. E, de uma forma geral, no da reflexão académica.

Lendo o discurso – que pode ser encontrado aqui – afigura-se óbvio que o papa utilizou palavras de Manuel II Paleólogo como citação erudita, num texto especulativo a propósito das relações entre fé e razão. O teólogo, e último imperador independente de Constantinopla, escrevera também, e Bento XVI citou-o nestes passos, que «a fé é fruto da alma e não do corpo», que «aquele que levar alguém à fé deve ser capaz de pensar bem e pensar justamente sem violência nem ameaças», e ainda que «para convencer uma alma razoável, não temos necessidade do seu braço, nem de armas». Paleólogo adiantou igualmente, e na sua especulação Ratzinguer limitou-se a citá-lo, que Maomé trouxe «o mandamento de defender pela espada a fé que ele pregava». Mas precisamente para contrariar a justeza desta ideia. É que basta folhear o livro sagrado do Islão para se constatar que, independentemente de outras acepções da exegese corânica, esta ideia se encontra de facto ali: «Matai aqueles que não crêem em Deus, nem no Dia derradeiro, aqueles que não consideram proibido o que Deus e o Seu Profeta proibiram, aqueles de entre os homens do Livro que não professam a crença da verdade», proclama o Corão, que sublinha a necessidade de ser tal acto levado às últimas consequências, sem qualquer piedade dos adversários, até que estes «paguem o tributo, todos sem excepção, e fiquem humilhados» (Sura Nona, 29). Não faz qualquer sentido negar o preto no branco.

É claro que, neste campo, a tradição da Igreja católica tem enormes telhados de vidro. Ratzinguer sabe-o bem e, pelo seu percurso de vida, nem é daqueles que mais contestam a tradição de intolerância e violência que a Santa Sé foi aceitando ou promovendo. Mas é claro também aquilo que, em mais este caso, pretendem os manipuladores da «rua islâmica» (como, entre nós, chamou Pulido Valente aos que sob condições de opressão e indigência cultural se deixam facilmente manipular por qualquer mulá mais exaltado). Querem «apenas» que as citações da tradição cultural da humanidade que possam ser consideradas inconvenientes para os seus propósitos e o seu proselitismo sejam rasuradas, omitidas, apagadas. E, acima de tudo, não querem perder mais um pretexto para incendiarem as praças, reforçando a indiscutibilidade do seu poder e aproximando-se um pouco mais das suas metas.

P.S. 1 – Sugiro ainda a leitura de um post recente do Luís Januário.
P.S. 2 – Admito que a intervenção de Bento XVI possa ter sido «pouco diplomática», e aparentemente estranha, no contexto da habitual prudência vaticana. Mas o que está em causa é bem mais grave que os contornos de uma eventual
gaffe.

    Opinião.