O futuro próximo e o PS

Na sanha maniqueia que tragicamente é tradição de parte da esquerda – mantenho o antigo projeto de escrever um ensaio sobre a origem e o lastro histórico dessa escolha – o facto de me ter insurgido contra a opção dos partidos parlamentares à esquerda do PS na rejeição do Orçamento fez com que logo surgissem comentários referindo que tinha apelado ao voto no PS ou até à sua maioria absoluta nas próximas eleições legislativas. Só posso dizer, a quem provar que escrevi ou disse tal coisa, que oferecerei uma semana de férias nas ilhas Fiji com direito a acompanhante. O que fiz, isso sim, foi manifestar uma desapontada mágoa – partilhada por tantas pessoas de esquerda que tenho lido ou contactado –, afirmar que a decisão pode levar o PS a essa maioria, e apelar, face ao sucedido, a que se olhe agora em frente. Em primeiríssimo lugar, no sentido de manter a direita fora do poder, e depois no de construir uma governação pós-eleitoral democrática, justa e o mais progressista possível.

Muito há para caminhar nesse sentido, e o que este texto faz é apenas olhar um pouco para o Partido Socialista e para o papel que este partido de esquerda, plural e contraditório, mas essencial na nossa democracia e que foi decisivo para nos libertar do negro pesadelo de 2011-2015, deve desempenhar. Constatando, desde logo, aquilo que só não vê quem não quiser ver: sendo um partido amplo e socialmente transversal, que não têm propriamente – felizmente, a meu ver – uma ideologia matriz e um manual de comportamento, é natural que nele convivam pessoas, atitudes e escolhas bastante distintas. Existe por este motivo, sem sombra de dúvida, uma «direita do PS» que sempre conviveu mal com a ex-Geringonça e que agora rejubila e levanta a cabeça, ciosa de um regresso ao bloco central e de uma rejeição da aproximação à esquerda, que sempre detestaram.

Em primeiro lugar, a solução de 2015 não deu nada mau resultado, como qualquer pessoa honesta reconhecerá: mesmo em contexto de crise pandémica e com contradições pelo caminho, foram anos de recuperação da hecatombe passista e de conquista de alguns direitos com o apoio de toda a esquerda parlamentar. Em segundo lugar, deve ser recomposta, sob o perigo de um regresso revanchista da direita, mas sempre num processo de diálogo com uma esquerda mais à esquerda que também não é estática. Em terceiro, impõe a clara continuidade, na direção do PS, do setor que não deseja o regresso do «centro», o que deverá traduzir-se em candidaturas e programa eleitoral em conformidade. Em quarto, requer uma renegociação com o BE e o PCP, que poderá até assumir a forma de acordo pré-eleitoral. Agora muitíssimo difícil, mas não impossível se existir vontade e abertura de todas as partes (embora, estupidamente, alguns setores tudo estejam a fazer para diabolizar o PS no seu todo). E em quinto lugar, numa articulação também com outros setores: penso no PAN (se assumir de vez a vocação ecologista que o inócuo «PEV» jamais teve) e no Livre (se afastar o ultrabasismo que o torna tantas vezes um catavento).

O essencial, dramático mesmo, será realmente impedir a direita de nos voltar a governar. Com ou sem o apoio parlamentar da oportunista muleta de extrema-direita. Contra isto, tudo deve ser tentado e feito. Nas urnas e sobretudo fora delas. Pelo PS desde logo e em primeiro lugar, naturalmente, mas sempre, imprescindivelmente, em diálogo com a esquerda que o assuma e vivifique.

Rui Bebiano

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