O que aí vem (no lado mais à esquerda)

Foi o cientista político Georges Lavau quem, em 1968, utilizou pela primeira vez a categoria de «função tribunícia» num estudo que escreveu sobre a atividade do Partido Comunista Francês naquela época, quando ensaiou uma solução governativa com o PS. Tomou-o aí como uma espécie de porta-voz das aspirações de grupos sociais situados à margem das dinâmicas do poder, contribuindo com essa proximidade para os retirar desse isolamento, integrando-os no sistema. Lavau considerou ainda que esse papel, ao colocar a relação do PCF com o poder de Estado como de uma natureza ao mesmo tempo representativa e integradora, o impedia de propor uma efetiva alternativa de governo, desviando-o também das virtualidades revolucionárias, assumidamente antissistema, que no passado detivera.

Em artigo publicado em 2015, o jornalista Jorge Almeida Fernandes foi buscar este conceito para procurar explicar o papel que, no contexto da então recém-constituída «Geringonça», o PCP nela iria desempenhar. A sua «função tribunícia» funcionaria então como uma alternativa à incapacidade de exercer o poder, mas seria, ao mesmo tempo, um método de garantir alguma influência política. Simultaneamente perturbadora e útil para a estabilidade do sistema político: não deixava de dar voz ao protesto, à reivindicação, mas desempenhava nessa mesma medida o papel de válvula de segurança para as tensões sociais então em curso como resultado do governo de direita de 2011-2015. 

Na semana passada, o mesmo jornalista regressou ao conceito para procurar explicar o papel do PCP na atual crise política: na realidade, a situação manter-se-ia, funcionando a dimensão reivindicativa do partido sobretudo como uma chamada de atenção em relação ao papel que ele viria a cumprir num próximo equilíbrio político situado ainda à esquerda.  Tendo a considerar apropriado este ângulo de análise, mas já não vejo que ele se possa aplicar às dinâmicas possíveis do Bloco de Esquerda. Tal se deve ao facto de a composição social do eleitorado deste, maioritariamente (embora não exclusivamente) apoiado em setores da média e pequena burguesia urbana, de algumas profissões liberais e de uma juventude mais inquieta e mobilizada com as questões sociais, que, de facto, não se situam totalmente de fora das dinâmicas de poder. 

É verdade que a dimensão sobretudo reivindicativa e a desafetação da perspetiva de colaboração num efetivo programa de governo de coligação têm um papel importante na definição das suas escolhas táticas e estratégicas, mas já lhe escapará a função socialmente integradora que o PCP ainda desempenha. Trata-se de uma questão de caraterização que não lhe assegura a mesma capacidade de representação em relação a setores do operariado e do trabalho rural que, apesar de algum recuo, este último partido, nomeadamente através de um organizado trabalho sindical e autárquico, continua a deter. Uma problema de identidade e de objetivos a curto e médio prazo sobre a qual será sempre útil alguma reflexão.

Rui Bebiano

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