Bella Ciao, Marco Paulo e a memória

Pensei que se tratasse de brincadeira quando alguém me disse que Marco Paulo tinha gravado uma versão do ‘Bella Ciao’. Temi, naturalmente, o pior. Não por ter sido o cantor a fazê-lo – dentro do género, até será dos mais profissionais dos «artistas» -, mas porque, com forte grau de probabilidade, dado o estilo totalmente despolitizado dos temas que canta, este iria desvirtuar o sentido de uma canção de profundo significado na história e na memória cultural do antimilitarismo e do antifascismo. Na minha própria memória pessoal, como na de várias gerações de outros homens e mulheres que participaram na resistência à ditadura, ela é recordada em associação com momentos nos quais funcionou como instrumento de incentivo ou de encorajamento.

‘Bella Ciao’ é uma canção popular italiana, composta pelo final do século XIX. Na sua origem, teria sido um canto de trabalho das Mondine, trabalhadoras rurais temporárias, em geral provenientes das regiões da Emilia Romagna e do Veneto, que se deslocavam sazonalmente para as plantações de arroz da planície do Pó. Mais tarde, a mesma melodia foi a base para uma canção de protesto pacifista contra a Primeira Guerra Mundial. Foi depois usada como um símbolo da Resistência italiana contra o Fascismo durante a Segunda Guerra Mundial, assim se mantendo na memória de um antifascismo global. Em 2017, a série espanhola La Casa de Papel, da Netflix, trouxe novo impulso a esta canção histórica, dando a conhecê-la a muitas pessoas do mundo inteiro. 

Mudar o seu texto, ou mesmo adocicá-la do ponto de vista melódico – como o faz também a versão de Marco Paulo ao introduzir uma guitarra portuguesa e um registo de fado – é como se pegássemos em hinos de combate como o «Avante, Camarada!», «A Internacional» ou «A Portuguesa», transformando-os em canções mais ou menos brejeiras ou açucaradas. Felizmente, em democracia não é crime civil fazê-lo, sendo inúmeras as versões de canções que alteram profundamente o sentido do tema original, e este caso não pode ser exceção. Ninguém, por certo, pedirá que Marco Paulo seja detido numa masmorra ou enviado para as galés. Mas o episódio representa um preocupante sinal de um tempo no qual é cada vez mais fácil desvirtuar, manipular ou despolitizar memórias de luta e generosidade coletivamente partilhadas.

Para comparação, aqui ficam as três primeiras estrofes das duas versões:
1) O hino/marcha original, usado pela Resistência, num registo de combate coletivo, abnegação e presença da morte:
«Una mattina mi son svegliato / O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao / Una mattina mi son svegliato / Eo ho trovato l’invasor // O partigiano porta mi via / O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao / O partigiano porta mi via / Che mi sento di morir // E se io muoio da partigiano / O bella ciao, bella ciao, bella ciao ciao ciao / E se io muoio da partigiano / Tu mi devi seppellir»
2) A de Marco Paulo, no esperado registo sentimental e delicodoce:
«O meu castigo / Só por ter dito / O meu adeus, meu adeus / Meu adeus, adeus / Só por desejo / Quis mais um beijo / E não há boca que o dê // Cantei baixinho / Ao teu ouvido / O meu adeus, meu adeus / Meu adeus, adeus / Querer-te tanto / Foi puro engano / Quem é que vai saber porquê // Bate a saudade / Mas já vem tarde / O meu adeus, meu adeus / Meu adeus, adeus / Não tem mais volta / Chegou a hora / De sermos cada um por si»
    Apontamentos, Devaneios, Etc., Memória, Olhares.