A linha vermelha

Já fui, e não foi por pouco tempo, bastante intransigente no que diz respeito à forma de estar, aos valores assumidos, à partilha e à defesa de convicções pessoais. Um tanto intolerante, mesmo, sem dúvida, apesar de desde cedo ser contrário a crenças assentes em absolutos. Nessa época, como acontecia com muitos daqueles e daquelas com quem partilhava percursos e projetos de futuro, para nós e também para a humanidade inteira, incompatibilizei-me mesmo com algumas pessoas, por vezes com razões que ainda hoje considero inteiramente legítimas, embora outras por puro sectarismo e, à época, uma ainda frágil e incompleta compreensão da diversidade, da complexidade e da fragilidade do humano. 

Foi uma maior atenção prestada a esta dimensão, a par de um acréscimo de experiências positivas e negativas, que me tornou, acredito sinceramente, uma pessoa um pouco melhor. Mantendo convicções e uma predisposição para erguer a voz por todos os combates que considero justos e necessários, mas passando a ser muito mais maleável e tolerante. E também um partidário efetivo, não apenas no plano dos princípios, mas igualmente na vida prática, do direito à diferença no campo das escolhas, das opiniões e das atitudes. No fim de contas, a base de uma sociabilidade saudável e da boa convivência democrática. Com duas exceções, porém: quando se transforma o legítimo desacordo em instrumento de agressão do outro e quando se defendem posições que põem em causa os direitos humanos mais elementares. Nestes casos, o convívio com quem o faz torna-se impraticável.

O princípio geral da aceitação da diferença significa entretanto, sem sombra de dúvida, a possibilidade de um convívio regular com pessoas de quem muito me separa. Para além até daquelas que, no plano político, social e cultural, de uma forma mais fundamental apartam a minha esquerda – «sou e serei de esquerda, apesar de mim e apesar dela», disse Camus em dezembro de 1959, durante a última entrevista, e aqui acompanho-o – da direita que sempre combaterei. Conheço e convivo muitas vezes com pessoas conservadoras e de direita, das quais quase tudo me separa, mas que mantêm uma atitude de respeito pela democracia, pelos direitos mais essenciais e pela convivialidade humana, que permite uma relação tranquila e não as faz passar fatalmente de adversárias a inimigas.

O mesmo já não pode acontecer, porém, com os trauliteiros, ou trolls, que vivem de pedra na mão contra quem não pense e atue exatamente como eles. Mas mais ainda, e aqui de uma forma completamente inflexível, com quem partilhe de posições de extrema-direita, servindo-se da ignorância, da manipulação, da intimidação e da mentira para atentar contra a democracia, com posições abertamente racistas, xenófobas, sexistas, homofóbicas, transfóbicas, obscurantistas ou favoráveis ao reforço da desigualdade entre seres humanos. Com estas, de há muito tracei uma carregada linha vermelha, e jamais aceitarei transpô-la mantendo uma relação normal. Aqui o vermelho é mesmo para parar.

Rui Bebiano

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