Palavras em luta

Fotografia de Enrique Jardim
Fotografia de Enrique Jardim

A propósito do projeto de resolução do Bloco de Esquerda que visa sugerir uma designação mais inclusiva para o Cartão de Cidadão, tenho lido e escutado posições que me têm deixado estarrecido. Muitas chegam de pessoas de quem gosto, com quem partilho muitas opiniões, e que considero sensíveis, sensatas e inteligentes, mas que neste caso mostraram um lado intempestivo e desnecessariamente agreste que desconhecia, colocando-se até ao lado de gente de quem em regra se distanciam. Desde logo pelo tom agressivo e liminarmente depreciativo – porquê tanto fel e sarcasmo por uma matéria destas? –, mas também pela natureza meramente reativa e não racional de alguns dos argumentos e comentários utilizados.

A linguagem inclusiva destina-se, como a palavra indica, a incluir. Possui por isso um sentido político, de missão. Claro que no seu uso ou em sua defesa se encontra muitas vezes excesso de zelo ou incompreensão das fundamentação histórica ou lexical. Já fui criticado, por exemplo, por citar Camus conservando «l’homme», «o homem», não optando por «ser humano» ou «o homem e a mulher». Mas era assim que pensavam e escreviam Camus e os da sua época. Também considero que falar de «presidenta» é tão tolo quanto, exagerando um pouco, seria falar de «dementa» ou de «dentisto», pois visariam atribuir um género a palavras neutras. E parece-me estilisticamente feio, o que para mim e para a vida da língua é muito importante, o uso político do @. Por mim, recorro à linguagem inclusiva de forma habitual mas parcimoniosa, apenas como um sinal, e não polvilho textos e intervenções de palavras desdobradas. Julgo até ser justamente esse uso parcimonioso que confere mais poder a tal marca da luta pela igualdade de género.

Por isto entendo que a proposta do Bloco, não sendo intrinsecamente disparatada, pode resultar extemporânea e prejudicar a própria intenção de quem a concebeu. E, desta forma avulsa e casuística, dá o flanco às acusações de maneirismo e de ridículo. Ao contrário, a sua inclusão dentro de um pacote legislativo – discutido publicamente e devidamente ponderado – talvez fosse mais eficaz e pudesse ser melhor compreendida. Impedindo o curso de argumentos sem pés nem cabeça, lançados nestes dias por quem dela pretende escarnecer, como os de que «não pode ser porque me ensinaram assim e o mundo não acabou por isso», ou de que «não é preciso porque é na luta na fábrica e na rua que as mulheres se emancipam». Esquecendo esses juízos que o conflito no campo do simbólico e das representações também integra o combate justo e necessariamente diário pela paridade. Isto é, por uma sociedade melhor.

Mas fora dos ambientes conservadores, para os quais toda a mudança, a das coisas mas também a das palavras, é inevitavelmente má e objeto de repulsa, pode falar-se deste assunto de forma aberta, argumentada e serena, sem sinais de violência verbal ou infelizes reduções ao absurdo.

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