O Muro como metáfora

Imagem de Aprilspit
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Terá sido entre as proclamações dos ativistas do Black Power e os graffiti do Maio de 68 que a ideia de que «a revolução não será televisionada» irrompeu de modo programático. Sugeria aquilo que, na época, para muitos parecia óbvio: que o fim do capitalismo e a sua substituição por um sistema reorganizado e perfeito deveria ganhar corpo no calor do combate político, na luta de ideias, na ação direta se necessário, mas jamais ser mediado pela televisão. No ano de 1989, porém, Berlim, Varsóvia, Praga ou Bucareste deram a ver ao mundo a «primeira revolução televisionada», a acontecer em simultâneo nos lares dos pacatos cidadãos. O seu episódio nuclear, pelo efeito produzido e pela dimensão simbólica, ocorreu na memorável noite de 9 de Novembro desse ano. Quem recorda o derrube do Muro seguido em direto pelo aparelho doméstico de televisão, rememora a perceção de algo até ali inconcebível: o fim de um mundo considerado sólido revelado em toda a crueza, como na sequência capital de um filme-catástrofe

Vinte e cinco anos depois, boa parte desse cenário permanece na memória. Mais que uma incomum fronteira física, o Muro de Berlim constituía uma metáfora, e as metáforas não se apagam a golpes de vontade ou de picareta. Do lado ocidental da cidade, uma parede de 155 quilómetros contornava todo o perímetro. Nela era possível tocar, sobre ela podiam pintar-se palavras de ordem, subindo até uma posição confortável podia observar-se o enigmático «Leste». Do lado oriental, o Muro era baço e deprimente, eriçado de arame farpado, perigoso para qualquer leste-alemão que tentasse uma mera aproximação ao carcinoma do capitalismo e do imperialismo. Em cada metade, ressoava uma existência esquizofrénica que concebia a realidade a partir de duas dimensões que mutuamente se olhavam e ignoravam. Como se não pudessem viver uma sem a outra, aceitando-se na certeza de que a proximidade se materializava numa distância que dava consistência à inflexibilidade de cada modelo. O Muro representava pois a metáfora suprema da ilusória simetria que a Guerra Fria impunha.

Em 1989, décadas de separação haviam imposto o rígido mapa a duas cores de uma Europa dividida entre universos de costas voltadas. Berlim sob cerco era pois o símbolo maior, o lugar de todos os perigos, cidade concebida como ponte minada entre lados inconciliáveis: um fechado sobre si, o outro que evitava olhar para o lado de lá. A tensão entre os blocos tinha ali o seu vórtice, propagado por manobras de intimidação, vigilância, espionagem e propaganda que naquele espaço, sempre sob os holofotes, ganhava superior dimensão. John Le Carré, em O espião que saiu do frio, de 1963, destaca na trama a sequência final, em que os guardas fronteiriços leste-alemães abatem sem piedade o casal de espiões britânicos em fuga. No ocidente, o êxito ainda maior do filme homónimo, dirigido dois anos depois por Martin Ritt, representou um momento forte na divulgação do Muro como sinal físico de uma impossível reconciliação entre o Bem e o Mal. Igualmente defendida do lado oriental.

Foi pois com uma ilimitada dose de incredulidade, misturada com a perceção de ver o curso da História a correr, que muitos dos que estavam acordados naquela noite presenciaram em direto, a partir dos sofás das suas casas, a materialização do impossível. No dia seguinte, as reportagens confirmavam tudo: não se tratara, de facto, de um delírio noturno. Todavia, a fábula terminada rapidamente deu lugar a outra, não menos imaterial, ao aceitarem-se todos os estereótipos típicos da Guerra Fria e ao propor-se uma visão reducionista e redentora do fim do Muro, como se deste fosse emergir um inevitável paraíso de liberdade, concórdia e bem-estar.

Todas as reportagens insistiam no fascínio dos berlinenses de leste pelas montras cheias de produtos que não podiam comprar, nas queixas pela ausência de liberdade e de expectativas, na dimensão imponente dos arquivos da STASI que os agentes não tinham conseguido destruir, na descoberta, partilhada pelos dois lados, de que «o outro» não era necessariamente o inimigo, na fé cega numa mudança que iria rapidamente produzir uma Alemanha liberta da divisão e do medo. Fora do estrito mundo dos que permaneciam fiéis ao modelo derrotado, o otimismo projetado tornou-se viral. Foi bem capturado na conhecida leitura de Francis Fukuyama, para quem, logo em 1992, todas as transformações de perfil épico e redentor iniciadas com a Queda do Muro e propagadas com o fim da União Soviética e da maioria dos Estados do «socialismo realmente existente», haviam tornado irreversível o triunfo da democracia de tipo liberal e da economia de mercado como escolhas únicas para sociedades chegadas ao termo do seu desenvolvimento histórico.

Esse microcosmo mutante surge como protagonista ou como cenário de inúmeras obras escritas nos mais diversos géneros, do ensaio académico à banda desenhada, passando pelo romance. A tendência dominante é para modular as observações simplistas iniciais. O Muro de Berlim (Tinta da China), de Frederik Taylor, detalha o processo de construção e de demolição do Muro, relatando, para além da conhecida intervenção das direções políticas dos Estados envolvidos na administração de Berlim, a insuportável tensão no interior de cada uma das comunidades forçadas a conviver com uma história comum de súbito interrompida. Stasiland (Civilização), resultante de uma investigação no terreno levada a cabo pela australiana Anna Funder, revela a teia, indissipável pelo simples eclipse do Muro, de ligações e de cumplicidades construídas pela atividade ininterrupta, minuciosa e brutal de agentes e informadores que não deixavam recanto algum da antiga RDA livre da vigilância e da delação. Berlin Blues, romance semi-autobiográfico de Sven Regener, constrói-se como memória da rede de resistência da juventude, feita de rejeição de uma sociedade bloqueada e de ingénua crença na dimensão libertadora da aproximação ao ocidente e à sua cultura juvenil. Zonenkinder, de Jana Hensel, narra, inversamente, a destruição da cultura própria do Estado leste-alemão e a forma como o capitalismo destruiu as práticas de resistência e de solidariedade que haviam permitido sobreviver-lhe. E Wladimir Kaminer, saído em 1990 da Rússia para se tornar o mais conhecido DJ de Berlim, retoma em Russendisco (Cavalo de Ferro) a sua experiência pessoal, expondo o processo de transformação de Berlim, coincidente com a abrupta mudança política, da cidade cercada e marcada pela desconfiança em local privilegiado do encontro entre o Leste e o Oeste.

A amostra é reveladora de uma complexidade que antecedeu, acompanhou e sucedeu ao fim da divisão da cidade, da Alemanha e da Europa. A dada altura, o que pareceu ser uma das maiores conquistas desse fim de mundo que teve lugar a 9 de Novembro de 1989, parecia ter sido o desenvolvimento de uma sociedade civil diversa e vibrante em quase todos os países da Europa Central e do Leste, associada à abertura dos que a povoavam a um universo de experiências que até ali lhes estava vedado, e possibilitando, aparentemente, a construção de uma unidade que tendia a empurrar a memória do Muro para arquivos e museus. A expansão, logo nos anos noventa, da Ostalgie, a nostalgia pela vida na antiga Alemanha do Leste, foi o primeiro sinal de que esse otimismo era um pouco exagerado. Os desenvolvimentos dos últimos anos, revelando assimetrias e conflitos dentro do próprio território alemão, mostram como se tratava de uma perspetiva prematura e pouco realista. De facto, o processo iniciado em 1989 encontra-se ainda, em grande parte, por finalizar. Os valores de liberdade e de solidariedade que pareciam vitoriosos continuam a ser postos em causa por desigualdades e conflitos de expectativas que nunca foram resolvidos. Por isso, um quarto de século depois, é a própria memória do derrube do Muro que surge como nova metáfora. Agora da incapacidade política para cumprir a antiga vontade de liberdade formal e dar corpo às condições de igualdade social, bem-estar e exercício dos direitos fundamentais que na realidade nunca passaram do papel. Por isso também os tropos da Guerra Fria e as memórias da Berlim e da Alemanha divididas continuam a pairar.

Em Medeia (Cotovia), originalmente publicado em 1996, Christa Wolf, talvez a mais conhecida escritora da antiga RDA, com cujo regime colaborou sem grandes hesitações, opondo-se frontalmente à reunificação, reviu parcialmente o mito da estrangeira cruel, apresentando-a como alguém que vive na fronteira entre dois sistemas de valores, corporizados respetivamente pela sua terra natal, a Cólquida, e por aquela para a qual fora forçada a fugir, Corinto. A solução encontrada pela escritora para este distúrbio é bastante significativa: exilados, os Colcos sobrevivem conservando a diferença física e cultural e aguardando tenazmente pela sua redenção. Resta saber se, na Alemanha que foi de Wolf, a distância entre os herdeiros dos dois distintos passados é suficiente para estimular aqueles que, estranhos numa terra estranha, resolvam bater-se pela pátria que perderam. É pouco provável que tal possa acontecer, mas para um bom número essa fantasia permanece. E conta.

Publicado na revista LER de Desembro de 2014.

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