A fúria do cinzento

Nos anos 60/70, a dinâmica do parecer servia por vezes, principalmente em ambientes urbanos, para distinguir esquerda e direita. Alguns códigos do vestuário possuíam «marca de classe», ou então enunciavam condições de pertença cultural. A qualidade da roupa, mas também o seu padrão ou o uso de determinados acessórios – como o cachimbo, o isqueiro, o lenço, a pulseira ou a esferográfica – davam-lhe forma. Claro que existiam características excessivamente tipificadas, como algumas associadas a certos mitos sobre a higiene íntima, separando uma direita que podia ter a alma negra mas supostamente se perfumava de uma esquerda cheia de boas intenções para os destinos do mundo e que no entanto se presumia tresandar. Sem entrar em detalhes sórdidos, posso confirmar que por vezes a vida copiava a caricatura.

Ao longo do tempo, de vez em quando alguma direita paleolítica foi retomando o tema, dando a entender que a esquerda terá um comportamento intrinsecamente «pouco educado» e que tal falha de civilidade começará sempre pelos cuidados matinais e pelo hábito (que na situação em apreço «fará o monge»). Em Portugal, por exemplo, lembrar-se-ão alguns de certos comentários aparecidos nos jornais quando o Bloco de Esquerda, na sua fase original, quebrou com os fatos cinzentos com os quais os partidos da sua família política com maior lastro geracional pretendiam ganhar o respeito de um eleitorado habituado ainda aos domingos de província.

O assunto regressou, agora com destaque de primeira página, a propósito da informalidade do traje de alguns membros do governo do Syriza. O que começou por ser uma brincadeira passou entretanto a ser recorrentemente utilizado por alguns comentadores da direita, para os quais a informalidade dos membros do governo grego traduzirá, na recusa do fato-e-gravata, uma forma de desleixo e de ausência de credibilidade. Isto é, uma forma de desqualificação. E talvez nem saibam que foram a ética e a estética da burguesia calvinista a estar na origem desse traje, fixado depois como uma espécie de uniforme, revolucionário primeiro, conformista em seguida, no decurso do século XIX. O argumento é estúpido e deslocado no tempo, traduzindo apenas preconceito e incompreensão por uma cultura política diferente. Uma cultura mais informal, menos elitista, menos constrangida pela hierarquia, e para a qual a essência do indivíduo não se mede pela alvura do colarinho ou pelo brilho do botão de punho. Neste sentido, a roupa informal de Varoufakis e o colarinho desapertado de Tsipras contêm uma carga igualitarista e libertária.

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