A camisola amarela

Quando era criança costumava passar o Agosto inteiro na praia da Figueira da Foz. Umas semanas bastante aborrecidas, ocupadas com infinitas horas de vagas e areal, intervaladas de sestas, merendas e sonos noturnos para descansar do excesso de mar, sol e areia. Num certo ano, porém, os meus pais resolveram aproveitar a altura, sem pedirem opinião, para tentarem fazer de mim um desportista, inscrevendo-me por atacado em três cursos de formação. Um ensinava a andar de patins e o objetivo era, naturalmente, prepararem o futuro jogador de hóquei: fui a uma única lição, estatelei-me duas vezes e desisti logo ali. Outro curso ensinava natação mas percebeu-se imediatamente que aquele não era o meu ambiente natural: enquanto as outras crianças começaram a nadar à quarta ou quinta aula, e eu só o consegui, e mal, à décima segunda.

Já o terceiro curso ensinava a andar de bicicleta e tinha a particularidade de ser fornecido por uma escola que era propriedade de Alves Barbosa, vencedor da Volta a Portugal, e logo por três vezes, durante os anos cinquenta, o que supostamente prometia a formação de campeões. Apesar de durante as lições ter atropelado um simpático casal de idosos que se atravessou no caminho quando ainda não sabia travar, esta foi uma experiência da qual me saí um pouco melhor. Não, não me transformei num grande ciclista, mas fiquei a gostar quase tanto de ciclismo desportivo quanto gostava já, e muito, mais do que de tudo o resto na vida, de futebol.

Nessa altura a Volta a Portugal era um dos momentos altos da vida da nação, com as multidões a seguirem apaixonadamente, antes ainda da era Agostinho, os confrontos pela camisola amarela entre Peixoto Alves, do Benfica, e João Roque, do Sporting (naturalmente o meu preferido). Manhãs e tardes inteiras de ouvido colado à rádio sofrendo em direto os dramas vividos na Pista de Loulé, nas estradas alentejanas ou na subida íngreme das Penhas da Saúde. E muito me custou quando os clubes de ciclismo (esses dois, mais o Porto, o Louletano, o Sangalhos, o Águias de Alpiarça, o Ginásio de Tavira) desapareceram e foram substituídos por equipas de empresas. Perdi então o amor à modalidade, como aconteceu aliás com a maioria do público que enchia as estradas para seguirem os «ases do pedal» e o seu clube do coração.

Falando da Volta à França, Roland Barthes considerou-a, em Mitologias, como uma «grande epopeia», eternamente vivida num «cenário de batalha». Chamou aí a atenção dos seus leitores para o facto de as descrições jornalísticas do comportamento dos ciclistas ao longo das etapas da prova terem menos a ver com a corrida em si do que com o confronto dos atletas com a natureza circundante: o ciclista, escreve Barthes, «mergulha, atravessa, voa, adere», e esse era, realmente, um fator que ajudava a conferir-lhe aquela dimensão única que tanto entusiasmava. E que, à escala pátria, tanto entusiasmava também durante duas semanas de Agosto. Ontem começou uma nova Volta e, de repente, faltou-me essa dimensão de gesta – singular, heróica, generosa – que tanto me ajudou a suportar aqueles imensos verões.

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