Author Archives: Rui Bebiano

Medidor de paisagens

Somos protagonistas da paisagem, que é sempre uma representação única para cada um de nós. Por isso ela pode ser tão sublime quanto terrível, tão desolada quanto tranquila, impressionante ou monótona. Desaparecidos de vez os territórios selvagens e inexplorados do passado, sucedem-se agora as áreas desflorestadas, preenchidas com culturas intensivas, as manchas irregulares da urbanização, as estradas que se prolongam, alargam e multiplicam. Como as paisagens industriais, os parques de diversões, os subterrâneos por onde a vida humana continua, os campos de batalha. Somos aí actores e espectadores, voyeurs da nossa própria existência. Filmamo-nos e fotografamo-nos apenas para não nos perdermos no labirinto que nos serve de consolo.

    Devaneios

    A Monte

    De repente, seis anos depois, o regresso feliz de Marisa Monte. E logo com dois cêdês, simultâneos e híbridos. Um, Infinito Particular, em fala pop que não é bem pop. Outro, Universo Ao Meu Redor, anunciado como disco «de samba» sem o ser propriamente. Em ambos, a música brasileira fora dos clichés habituais que nos chegam a cada mês. Bela, pujante e criativa – e inequivocamente contemporânea, sem todavia perder a identidade – tal como ela deveria sempre ser. Para ouvir sobretudo «quando a névoa toma conta da cidade».

      Música, Olhares

      Estado da arte

      Do Mausoléu de V.M. Molotov (1890-1986), erguido em 1975, ainda em vida do falecido, por Hans Magnus Enzensberger*:

      O seu traseiro de ferro também já não é
      o que era. Só o apara-lápis pendurado
      da corrente do relógio relembra ainda os anos dourados
      no politburo. Medita, dá estalos com os dedos.

      * Trad. de João Barrento

        Recortes

        Sinofilia

        No princípio da década de 1970, entre Lisboa e Viena, uma horda de jovens sedentos de justiça deixava-se seduzir pelas imagens edénicas de um mundo que presumia igualitário. A revista Nouvelle Chine – a edição em francês era aquela que chegava a boa parte de uma Europa maioritariamente francófona – mostrava cenários coloridos que pareciam de papel pintado. Operários trajados de forma sóbria, que se presumia honesta. Raparigas de cabelos uniformemente curtos e olhares luminosos. Camponeses esquálidos mas sorridentes, as pernas mergulhadas no lodo em prol do socialismo. Os maoístas ocidentais – que o próprio Mao, sabe-se hoje, se esforçava por manipular – mimavam, ainda que sem idênticos meios, os inflexíveis Guardas Vermelhos. Sonhavam acordados com a sua Grande Revolução Cultural Proletária. A mesma que ergueria na terra o Paraíso do uno. Sem passado ou divergências, sem o indivíduo fora do colectivo, sem ricos e também sem riqueza. Fait accompli: a felicidade ali à mão, indestrutível e para sempre. O reverso da visão cinematográfica de uma China contemporânea, desafortunada, aberta, mesmo que de forma condicionada, ao múltiplo e ao incerto, ao conflito e à mudança, à transposição das fronteiras, que emerge de O Mundo (2004), o filme de Jia Zhang-ke agora nos cinemas.

          Olhares

          Voz do povo

          Numa nota de imprensa escrita em 1947 pelo SNI de António Ferro, proclamava-se ser pelo folclore «que um povo reencontra o potencial poético característico da sua raça na sua forma mais cristalina e pura». O regresso em força, aos ecrãs televisivos, aos palcos das praças, aos desfiles alegóricos, às políticas culturais de alguns municípios, do folclorismo mais artificial, das cantadeiras mais aberrantes, do azedo arroto a chouriço, caldo verde e «boa pinga», assusta. Já repararam nele? Na forma como estão de volta o acordeão, os ferrinhos, a pandeireta? Como se insinuam outra vez, mostrando ao povo que o povo existe e, a cantar e a dançar, não deve querer ser senão povo? É provável que este retorno ao passado tenha alguma coisa a ver com uma recuperação da rusticidade – e do kitsch que lhe é frequentemente associado – consubstanciada na presidência saloia que agora se inicia.

            Opinião

            Sabedoria em Aphania

            Em Petsetilla’s Posy, obra semi-obscura publicada em Londres no ano de 1870, Tom Hood descreveu Aphania, um reino imaginário da Europa central no qual existia um código penal para as ausências de estilo e onde o plágio era punido com três anos de exílio. Determinadas violações da sintaxe eram mesmo castigadas com a pena capital, em alguns casos executadas de imediato e no próprio local no qual haviam sido cometidas. Para preservar a pureza de estilo, os adjectivos encontravam-se guardados na biblioteca nacional e cada escritor apenas podia utilizar três em cada dia. Os decididamente incapazes de escrever um livro de qualidade mínima eram pagos pelo Estado para viverem na ociosidade e se absterem de o tentar fazer.

            Mais no Dictionary of Imaginary Places, de Alberto Manguel.

              Devaneios

              Lawrence já não mora aqui

              O abuso do conceito de aventura afirma-se sobre os escombros de vidas passadas, de episódios contados em crónicas antigas, de cadernos de viagem com nódoas e páginas amachucadas, de romances feitos de movimento e distância. Perde a sua dimensão como acto ilícito, subversor do corrente, construído como viático de liberdade e risco, procura de um alhures inatingível do qual jamais se regressará a salvo. No último número, temático, a revista Déserts ensaia a história idílica e o presente encantador das caravanas concebidas para turistas. Procura mesmo perturbar a narrativa paradisíaca do oásis, enunciando o sabor benévolo de um percurso ao sol, sobre as dunas, providos os seus viandantes de roupa e sapatos confortáveis, tendas climatizadas, bebidas frescas, navegação GPS e guias-hospedeiros disfarçados de tuaregues. No caravanserai dos mortos legendários, T. E. Shaw, Lawrence da Arábia, sentir-se-á perdido na sombra de um outro mundo, de um outro tempo.

                Apontamentos

                A glória do fumo

                Na década de 1950, recorda um apontamento do suplemento (do DN), a pose das figuras da televisão (e do cinema, acrescento) incorporava o cigarro «como sinal de requinte e sintoma de segurança». Talvez fosse interessante olhar um pouco – neste tempo de antitabagismo irracional (inexistente no mundo islâmico, tal como na maior parte da Ásia, de África e da América a sul de Ciudad Juárez) – para a história dos interditos e da valorização simbólica do tabaco. Reparar na forma como este funcionou enquanto sinal de emancipação (das mulheres, dos adolescentes, dos soldados, dos empregados e dos operários submetidos a cadências absurdas), marca de reflexão e de inteligência (entre os intelectuais ou aqueles que o ambicionavam ser) ou elemento-chave das estratégias de sedução social e amorosa.

                  Apontamentos

                  Solidariedade

                  «Nós somos impenetráveis», escreveu um dia Unamuno. «Os espíritos, como os corpos sólidos, não podem comunicar-se a não ser pelo toque na sua superfície, não penetrando uns nos outros, e muito menos fundido-se.» Sem esta consciência, erram, de desconsolo em desconsolo, até ao abandono. Com ela, podem tornar-se solidários sem se sentirem hipócritas.

                    Apontamentos, Olhares