
A tendência para referir determinados grupos sociais utilizando uma generalização que dilui as suas diferenças internas e salienta apenas aquilo que num determinado contexto lhes é apontado como comum, é uma prática tão antiga quanto a existência humana registada. Desde a criação da escrita na Suméria, a evocação pública dos protagonistas da história, fosse esta a dos poderosos ou a dos povos, sempre deu voz a esse processo de filtragem da realidade que dilui as efetivas diferenças e contradições. Neste sentido, é vulgar falar-se como de um todo do «povo», dos «portugueses», dos «europeus», dos «trabalhadores», dos «estudantes», dos «árabes» ou dos «ciganos», qualificando cada grupo como bloco possuidor de um carácter comum, muitas vezes apresentado como estereótipo que reforça a separação entre um «nós» e um «eles».
Obviamente, faz todo o sentido usarmos estes conceitos para referir de forma objetiva determinados coletivos. Todavia, eles tornam-se tóxicos sempre que, no discurso político ou nas representações da história, servem para atribuir um sentido único e unívoco ao que, na realidade, é múltiplo e complexo. A partir desse momento, torna-se fácil desvalorizar as diferenças que sempre contêm, impondo uma representação artificial e monolítica da sua identidade e suprimindo a singularidade humana. A título de exemplo, um dos coletivos desta natureza que atravessa os últimos dois séculos é o de «classe operária», usado para identificar um grupo de produtores com caraterísticas sociais julgadas comuns e dotado de uma missão histórica emancipatória que lhe é associada. Conhecem-se as perversões que, em diferentes tempos e lugares, esta abstração produziu.
Outro exemplo deste abuso é fornecido pelo conceito de «imigrante», hoje tão utilizado e tantas vezes pelas piores razões. Ele tem, naturalmente, um sentido objetivo, aplicado ao conjunto de pessoas, procedentes de diferentes países, que passam a viver de forma permanente num outro. Mas pode adquirir contornos inquietantes e perigosos quando reúne seres humanos diferentes, com distintas origens, formação variada, motivações múltiplas, comportamentos muito distintos, motivações plurais, incorporados numa massa informe que não vê os particularismos. É esta, aliás, uma das estratégias de que se tem servido a extrema-direita para diabolizar essas pessoas «estranhas» que demagogicamente culpam de todos os males.
Foi sob as ditaduras e as tiranias que esta estratégia foi levada mais longe. Principalmente porque permitiu sempre, a quem nelas exerceu pela força o poder, impor a sua visão da realidade, interpretada de forma simplificada e sem contestação, a um todo que na realidade é complexo e diferenciado. Em particular os regimes totalitários do século XX procuram elevar essa leitura dos coletivos – tendo como referente a «nação», a «raça», o «povo» ou uma «classe» – a um nível máximo, sempre sacralizado, que justifica a repressão de toda a diferença. No mundo atual, o caso mais extremo e fácil de observar é a Coreia do Norte, onde é imposta, de cima para baixo, uma perspetiva rigorosamente única e irrefutável da realidade fundada numa ideia absolutizada de «povo coreano».
Em democracia estas generalizações não são geralmente tão graves, sendo principalmente usadas pelos seus inimigos para a combaterem. É esse, aliás, o cerne do discurso populista, que confere um valor absoluto a certos conceitos e valores para mais facilmente iludir e mobilizar o eleitorado. Todavia, os programas eleitorais, mesmo os das forças democráticas, caem demasiadas vezes nessas generalizações tóxicas. Como acontece, por exemplo, quando se pensam os projetos autárquicos sem ter em conta a crescente diversidade das populações, quer no que respeita às suas origens, ou no que se prende com as suas práticas e anseios. Regressarei a este último aspeto na próxima crónica.
Rui Bebiano
Fotografia de Anna DziubinskaPublicado no Diário As Beiras de 20/9/2025