A nossa esquerda mais ortodoxa e imobilista continua, na tentativa de justificar, ou pelo menos de «explicar», a agressão militar russa sobre a Ucrânia, a invocar – basta frequentar certas páginas de redes sociais, mesmo as de algumas pessoas daquela franja com livros e estudos, para vermos as enormidades que por ali desfilam e se procuram «provar» – o carácter supostamente «neonazi» do governo e do parlamento de Kiev. Se é historicamente verdadeiro que, na época da invasão da União Soviética por Hitler, existiram setores locais que a apoiaram, como aconteceu, aliás, dentro da própria URSS e de outros estados da região, jamais esses grupos, que contam ainda hoje com alguns nostálgicos apoiantes, constituíram uma maioria significativa da nação ucraniana.
É certo que, por ali, infelizmente existem, como existem por todo o lado, grupos de extrema-direita, alguns deles abertamente neonazis, mas a sua expressão real, verificável pelos resultados das últimas eleições que puderam ser realizadas, é residual: os partidos de extrema-direita somados reuniram apenas 1,9% dos votos, não tendo, neste momento, expressão parlamentar. Aliás, alguns pequenos grupos, a maioria sem representação parlamentar, tornaram-se até defensores de Putin, logo traidores declarados da nação ucraniana, sendo por esse motivo necessária e liminarmente proibidos de prosseguir a sua atividade. E o Batalhão Azov, tantas vezes invocado como exemplo daquela dimensão neonazi, jamais passou de um setor limitado das forças especiais, hoje praticamente desmantelado.
Será interessante compreender o que passa pela cabeça daquelas pessoas desvairadas no seu ódio à Ucrânia e na preservação da mentira, quando, aqui em Portugal, começamos a ter uma noção clara da existência, do real perigo e dos obscuros apoios de organizações paramilitares expressamente nacionalistas e neonazis. Às quais deve acrescentar-se um amplo segmento da população que comunga dos ideais de extrema-direita, votando num partido que, em larga medida, os defende de uma forma constante e agressiva. Será que, para elas, Portugal tem agora, também, um «governo neonazi»? Ou é «um país neonazi»? Acredito que a cegueira não chegou a tanto, mas a situação deveria servir para olharem a Ucrânia com outro sentido da realidade, deixando de disseminar mentiras e calúnias. E colaborando, na prática, com as atrocidades dos invasores.