
Todas as cosmogonias – os conjuntos de histórias, mitos ou teorias sobre a origem e a formação do cosmos e da humanidade, apoiados em narrativas que envolvem forças divinas ou princípios filosóficos – assentam no combate, julgado essencial entre quem as partilha, entre a Luz e as Trevas. A primeira servindo como metáfora do conhecimento, da razão e da felicidade, as segundas para nomear simbolicamente a ignorância, o caos e o infortúnio. No Antigo Testamento, a ideia de criação traduziu-se na ordem divina inicial de um «Faça-se Luz!», enquanto a revolução cultural do iluminismo, que pelo século XVIII procurou entregar aos humanos o controlo dos seus destinos, se fundou na ideia de uma vitória do esclarecimento sobre a escuridão escravizante da ignorância.
A perceção da existência humana contida entre esses dois polos tem mantido, na linguagem comum, a forma recorrente de um enfrentamento opondo historicamente o «lado claro e luminoso» ao «negro e obscuro». Não, como proclama o disparate comum entre a vertente alucinada da cultura «woke», no «denegrir» de alguém devido à cor escura da sua pele, mas como expressão de um antagonismo fundador que remonta pelo menos às primeiras sociedades do Oriente Médio. A divindade egípcia Rá, representada por um disco solar sobre uma cabeça de falcão, revelava-se essencial para assegurar a ordem «clara» do mundo e o triunfo da vida sobre o negrume do Tuat, a região habitada por mortos e demónios. Na Mesopotâmia o deus Samas cumpria idêntica função.
O combate figurado entre a Luz e as Trevas acompanha, pois, toda a história humana, materializado no confronto do conhecimento, como parte essencial da vida, com o obscurantismo, julgado um sinal de decadência e morte. Mesmo Marx, na doutrina que concebeu como emancipatória da humanidade, se referiu à opressão capitalista associando-lhe metaforicamente o negror da noite, enquanto a letra original de «A Internacional», escrita após a derrota da comuna de Paris pelo poeta, operário e anarquista francês Eugène Pottier, termina num confiante «Le soleil brillera toujours!», «O sol brilhará para todos nós!» na versão em português. O mínimo que pode afirmar-se, nesta terceira década do século XXI, é que essa oposição está longe de ser anacrónica.
Sob uma cultura global condicionada pelas redes sociais desreguladas, pela degradação da comunicação social e pela manipulação da informação – onde a mentira impera, a ignorância perde a vergonha e o conhecimento é desacreditado quando não serve interesses – aquele confronto volta à ordem do dia. Após dois séculos de afirmação quase ininterrupta da instrução e do livre debate, apenas contrariada pela experiência dos fascismos, reentramos num escuro túnel, habitado por brutos, onde mostrar conhecimento e debater com propriedade e elevação são práticas desprezadas. Por isso, como no confronto com Sauron, rei das Trevas no universo ficcional de O Senhor dos Anéis, de Tolkien, importa reunir a vontade combativa de quem está do lado da Luz. O do saber, mas também o do progresso e da liberdade.
Rui Bebiano
Fotografia de Luke CollinsonPublicado no Diário As Beiras de 13/12/2025
