Desconfiar da liberdade entre quem por ela se bate

O tema da liberdade e do seu papel nas sociedades contemporâneas pode parecer pouco relevante para o campo plural da esquerda política e cultural, dado vivermos um tempo em que a sua preocupação maior e mais urgente é, com todo o sentido, o avanço do populismo, do autoritarismo, do ódio, do egoísmo, do racismo e, no geral, dos valores, metas e métodos da extrema-direita. Conta-se entre estes, aliás, a manipulação demagógica do ideal de liberdade, utilizado, com a ajuda das redes e de alguma comunicação social – e sem o equilíbrio oferecido pela responsabilidade, pela verdade e pelo conhecimento adquirido –, para influenciar a consciência dos cidadãos.

Todavia, é na tradição do pensamento de esquerda que historicamente se filia uma ideia de liberdade substantiva e ajustada à mudança do mundo, projetada a partir dos combates emancipatórios levados a cabo nos cem anos que se seguiram à Revolução Francesa. O historiador Timothy Snyder considera que essa ideia incorporou cinco caraterísticas: a «soberania», ou aptidão de cada grupo ou sujeito fazer escolhas e escolher um percurso; a «imprevisibilidade», ou faculdade de adaptação a novas situações; a «mobilidade», ou permanência da sua vitalidade no espaço e no tempo; a «factualidade», ou capacidade de intervenção sobre a realidade que permite mudá-la; e a «solidariedade», a mais perfeita delas, que se oferece como um direito inalienável a todos os humanos. 

A liberdade não é, porém, um valor absoluto e que valha por si, que dependa apenas da capacidade para escolher caminhos, modos de estar e de representar o mundo, ou projetos, mas requer também condições para que possa ser desfrutada e desenvolvida. O que não pode acontecer quando faltam meios materiais, quando os direitos sociais estão ausentes, ou quando a ignorância tolda as consciências. O dilema historicamente vivido pela parte da atual esquerda política que o continua a transportar de forma dramática, prejudicando até a sua missão, consiste em considerar como determinante apenas o segundo fator, material e coletivo, desvalorizando o primeiro, subjetivo e individual. 

Além disso, este setor, minoritário, mas muito ativo, integra também um conflito com a dimensão pessoal da liberdade, apoiando-se numa tradição política e filosófica, assente numa visão determinista e materialista do mundo, apoiada numa lógica de vanguarda detentora da «verdade», que no século XX produziu experiências históricas autodesignadas progressistas, promovidas com objetivos justos e solidários, mas que legitimaram regimes totalitários, injustos e repressivos. A maioria desapareceu em 1989, e muitos dos que os tomaram como farol alteraram certezas e propostas, mas nem por isso alguns perderam uma perspetiva monolítica e pouco dialogante, onde falta o valor da liberdade, sobre os caminhos do mundo e da conquista da felicidade.

É neste contexto que se pode observar, entre alguns setores da esquerda política e cultural, traços de desconfiança perante a opinião crítica e o pensamento livre, mesmo quando estes pertencem ao seu campo e empunham as suas bandeiras. Herdeiros, conscientes ou não, do velho «centralismo democrático» criado por Lenine e caricaturado por Estaline, aplaudem-se apenas a si próprios, encarando toda a divergência como vírus perturbante. Não como fator de enriquecimento e instrumento dessa liberdade cuja chama, a par da que vem da ideia de igualdade, está afinal na matriz do ideário pelo qual se batem.

Rui Bebiano

Fotografia de Icarus Chu
Publicado no Diário As Beiras de 18/10/2025
    Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Opinião.