Coimbra: três bloqueios em tempo de autárquicas

Uma das grandes conquistas do nosso regime democrático constitucional é a afirmação do poder autárquico. Sob a ditadura, além de não resultar de eleições livres e de estar fora do escrutínio público, quem o representava era escolhido pelo governo e controlado a partir da capital, detendo reduzida capacidade de decisão e orçamentos sempre curtos, dependentes da intervenção de figuras «da terra» com poder, dinheiro e ligações a quem mandava. Mesmo reconhecendo que, em democracia, o poder autárquico foi por vezes discricionário, de vistas curtas e pouco transparente, ele jamais deixou de conter uma importante dose de dedicação, criatividade e proximidade, capaz de trazer claras melhorias às populações, aos seus lugares e à sua vida.

Coimbra, cidade onde basicamente resido desde outubro de 1969, não foge a esta mudança essencialmente positiva, sendo incomparável, numa confrontação que resulta positiva, a cidade que encontrei quando cheguei e aquela que hoje conheço. Porém, este reconhecimento não impede a perceção de bloqueios muito persistentes, apontados por algumas vozes críticas e revisitados a cada eleição autárquica, mas que têm permanecido por superar. Destaco três daqueles que, sob uma perspetiva macropolítica, me parecem dos mais prementes e adiados, e que importa ter em conta em processos de mudança voltados para uma cidade melhor, mais moderna, mais humanizada e mais feliz.

O primeiro bloqueio é o imposto por aquilo que, paradoxalmente, as forças conservadoras consideram, de forma consciente, como positivo e identitário. A obsessão doentia pela «Tradição» e pelo «Passado», associada a um padrão estático de «imaginário coimbrão», tem sido fator inibidor da real modernização e de um progresso na pluralidade. Uma cidade moderna e livre pode e deve integrar os costumes, a história e a memória, mas não fazer deles a sua permanente bandeira, exibida até à náusea, nem pode focar-se neles em detrimento de tudo o resto. Aliás, esta tendência negativa está ligada ao peso de um certo provincianismo, que subordina o universal ao local, e não o seu contrário, indispensável numa lógica ousada e criadora de abertura ao mundo e à contemporaneidade.

O segundo bloqueio liga-se ao anterior e consiste na preservação de um entendimento da população da cidade em função do antigo modelo, mantido durante séculos, que a toma como basicamente espartilhada entre o universo universitário, os serviços a este ligados e as populações circundantes que o serviam. Apesar de na últimas décadas a cidade ter crescido muito na sua dimensão física e na diversidade demográfica e social, este novo universo – onde se contam hoje numerosos estrangeiros, sejam estudantes ou trabalhadores, e uma forte presença de moradores que pernoitam nos bairros «dormitórios» – confronta-se ainda com uma sua representação, e uma escolha das políticas que a têm orientado, que subvaloriza esta nova e dinâmica realidade.

Já o terceiro fator de bloqueio prende-se, uma vez mais como paradoxo, com as contínuas dificuldades de relacionamento entre a Universidade e a urbe que a rodeia, de costas recorrentemente voltadas, por muito que, de quando em vez, declarações de intenção e iniciativas pontuais procurem negar ou desvalorizar a objetiva divisão. Não é desprovido de sentido dizer-se que esta possui uma origem traumática, associada ainda à antiga e dolorosa interpretação da cidade como um espaço de conflito entre os aristocráticos académicos da colina da Torre e os populares «futricas» da beira-rio e arredores, imagem que ainda influencia uma separação visível até em domínios como a atividade cultural, a autorrepresentação e o desenho da imagem externa.

Face a estes três bloqueios, a redenção de Coimbra estará no assumir de uma condição plural, cosmopolita, moderna, dialogante e criativa, capaz de combinar a riqueza, a variedade e a capacidade de quem a habita, de quem a procura ou dela faz a cidade de eleição, de referência e de memória. Libertando-se da nostalgia paralisante que a afoga no seu próprio passado e valorizando a vasta e aberta planície onde assentará o seu futuro. As eleições autárquicas são um momento importante para afirmar esta escolha.

Rui Bebiano

Publicado no Diário As Beiras de 7/10/2025
    Atualidade, Coimbra, Democracia, Memória, Opinião.