
Com o arranque e a expansão da «era industrial» passámos, sobretudo nos países e regiões que a levaram mais longe, a viver um tempo pautado pela omnipresença do ruído. Este traduz uma sobrecarga de estímulos sonoros não naturais, associados a uma agitação e a um ritmo acelerado da vida coletiva, tendente a fazer recuar os grandes espaços de silêncio que, salvo em situações excecionais – como em festas, guerras ou espetáculos ocasionais – por milhares de anos definiram o cenário dominante da vivência humana. O crescimento incontornável do ruído começou nas grandes cidades, alargou-se depois às menores e está hoje por toda a parte, pautando uma vida onde o contacto com o silêncio é cada vez mais limitado, evitado até por muitas pessoas moldadas ao barulho e que sob este se socializam.
Os sinais estão por todo o lado. Já não apenas em momentos especiais, intervalados no tempo e no espaço, mas também, e cada vez mais, num quotidiano que os exibe a todo o instante e por todo o lado. Para além do fragor de um trânsito sempre crescente de pessoas e de veículos, ou da vozearia em cafés e restaurantes, recebemos diariamente, queiramos ou não, o impacto das televisões e dos computadores sempre ligados, das instalações sonoras em ruas, praças e centros comerciais, dos telefonemas e videoconferências em altíssima-voz realizados em lugares públicos, da contante publicidade gritada, dos sistemas de som a funcionar no máximo dos decibéis em automóveis de janela aberta.
Neste mundo saturado de informação, estímulos e ruído – compelido mesmo a mantê-los, como sinal dessa «euforia perpétua» de que nos fala Pascal Bruckner – o silêncio pode, contrariamente, traduzir-se num alívio, num momento de repouso, mas também numa força vital que, para muitos, pode ser tão importante e dinâmica quanto os slogans ruidosos e os estampidos martelados impostos no quotidiano. Na sua História do Silêncio, Alain Corbin considera-o como bem mais que uma ausência de ruído, associando-o a parte de uma construção cultural que «reside dentro de nós, na cidadela interior que grandes escritores, pensadores, académicos, mulheres e homens de fé, cultivaram durante séculos». Nesta dimensão, o silêncio, como meio para «estar consigo», pode servir como fator essencial e dinâmico da criação.
Pode também tornar-se um ato de combate e resistência, afirmando a individualidade e a liberdade contra as normas sociais que nos pressionam a ficar sempre «ligados», contribuindo para o ambiente geral de ruído e de ausência de espaço para a reflexão crítica, a invenção, o estudo, a formação de uma dimensão mental e emocional própria. Além disso, o silêncio pode também ser uma poderosa forma de conexão com os outros, uma vez que não precisa ser solitário, podendo antes ser uma experiência partilhada que tanto fortalece a intimidade como enriquece as relações. No precioso Silêncio na Era do Ruído, o aventureiro e explorador norueguês Erling Kagge chamou-lhe mesmo «um luxo», considerando-o até o mais exclusivo e duradouro de todos.
Não pode, todavia, confundir-se a imprescindível valorização do silêncio, encarado como um direito que as autoridades públicas deveriam proteger e estimular de uma forma mais ativa e sistemática, com a quietude e o silenciamento. Enquanto a primeira pode exprimir um modo egoísta de desinteresse e de escapismo, o segundo traduz a imposição de uma ordem que bane ou subalterniza vozes e expressões, definindo uma estratégia deliberada de domínio e de opressão. Muito pelo contrário, o silêncio de que aqui se fala é libertador, defrontando a tirania do ruído que nos impede de pensar, de criar e de construir o nosso próprio mundo, sem que outros nos sejam impostos a toda a hora pelos ouvidos adentro.
Rui Bebiano
Fotografia de Icarus ChuPublicado no Diário As Beiras de 6/9/2025