
A partir dos anos noventa passou a falar-se bastante, sobretudo entre quem as tenha no eixo das suas vidas, do recuo, ou da crise, das humanidades. Isto é, de uma rápida e acentuada desconsideração pública dos saberes e das práticas que estudam e transmitem a experiência humana, incluindo-se neles a literatura, as ciências da linguagem, a história, a filosofia, os estudos culturais e as artes. Todos procuram compreender e partilhar as formas usadas pelos seres humanos para se expressarem, interagirem e criarem significados nos planos pessoal e coletivo, combinando diferentes modos de estar no mundo, de o entender, de o representar e de o transformar.
São-lhe muitas vezes associadas outras disciplinas, como a sociologia, a antropologia, a ciência política, o direito, a psicologia social ou a geografia humana, que se interessam também pela vida em sociedade. Todavia, estas detêm junto do poder político e económico um referente de objetividade e de «utilidade» mais explícito, enquanto as humanidades são frequentes vezes relacionadas com formas de subjetividade e escolhas diletantes julgadas sem préstimo material. Foi esta uma das razões pelas quais as políticas educativas do neoliberalismo passaram a encará-las como formas de despesismo, com um peso dispensável nas contas públicas. Salvo quando a sua presença possa servir para legitimar certas escolhas. Em particular a história local e a dos «grandes feitos» tem cumprido esta função, passando a ser olhada com desinteresse logo que revele um passado silenciado ou diverso das leituras dominantes.
Todavia, as humanidades têm sido essenciais para produzir sociedades melhores e para propagar sensibilidades que favoreçam a afirmação do humano. O conhecimento que oferecem, as experiências que comunicam, a diversidade que mostram, os trajetos dos indivíduos e das sociedades que veiculam, têm sido, ao longo dos séculos, vitais para ampliar e transmitir a variedade do mundo, tornando-o melhor. E também para destacar, como exemplo e legado coletivo, os valores essenciais do progresso, da liberdade, do respeito pelo outro, da solidariedade, da cordialidade, da partilha, que tornam o humano mais humano e ajudam a melhorar a vida de todos. Ao mesmo tempo, elas alimentam os princípios fulcrais da democracia, bem como, palavras da filósofa Martha C. Nussbaum, «o valor da imaginação, da criatividade, da empatia e do pensamento crítico».
Daí não ser de estranhar o desinvestimento nas humanidades em escolhas de política educativa, a sua acentuada simplificação ou o seu apagamento nos curricula escolares, a sua subalternização na imprensa e na televisão generalistas, levados a cabo por todo o lado, mesmo sob regimes democráticos regulados pelo utilitarismo, insistindo nas competências técnicas em detrimento dos saberes substantivos, e provocando o referido recuo. Não pode, por isso, causar estranheza a atual afirmação em diferentes setores do espetro partidário de uma cultura política, segundo Teresa de Sousa, «sem alma e sem valores». Capaz de conviver, por falta de memória e de conhecimento, com um «novo normal» feito de ódio social, de deturpação da verdade, de menosprezo dos direitos humanos e de retrocesso das conquistas sociais.
Cego pela ignorância da experiência acumulada e dos erros do passado, ou por uma ligeireza «ultratecnicista» que o sistema educativo tem propagado, um número crescente de pessoas – em particular entre as mais jovens, como mostram inquéritos recentes – torna-se presa fácil de discursos sem fundamento, apresentados como novidade e capazes de devolver a história humana à estaca zero, dos quais se servem os populismos e a extrema-direita, empurrando sociedades razoavelmente equilibradas e pacíficas para um novo estado de barbárie. Por isso, por demorado e difícil que seja o caminho, é tão importante pôr no centro do combate político diário a recuperação das humanidades.
Rui Bebiano
Fotografia de Spenser SembratPublicado no Diário As Beiras de 12/7/2025