A asfixia da «cultura do ódio»

O que aconteceu há dias com o futebolista brasileiro Vinícius Júnior, do Real Madrid, vítima de racismo durante o jogo com o Valencia realizado no estádio deste clube, com largos milhares de pessoas a urrar e a chamá-lo de «macaco» devido à cor da pele, não foi uma situação excecional. Nem diz apenas respeito ao universo do futebol, onde episódios desta natureza se têm multiplicado. Também não foi só um caso gravíssimo de racismo. Tratou-se sobretudo de um sintoma dessa negativa «cultura do ódio» que está a cercar as nossas vidas e é transversal ao desporto, à política, ao quotidiano e mesmo aos territórios da cultura e do lazer, supostamente mais tolerantes. 

Como forma extrema de rejeição do outro, esse ódio pode ser pessoal, mas ganha maior impacto quando adquire uma dimensão coletiva, mobilizando então formas extremas de conflito e de violência. Exprime-se em modalidades diversas, segundo as circunstâncias, os tempos e os lugares: aplica-se à animosidade tribal contra grupos humanos com diferentes práticas, valores, tradições e sinais de identidade, como ocorre com o racismo e a xenofobia, mas também ao fanatismo religioso e à rejeição de grupos privados dos direitos de democracia plena, como as mulheres ou as minorias sexuais.

Existe também um «ódio racional», dotado de uma justificação mais complexa e elaborada. Está associado ao duplo sentido tomado pela ideologia, seja como doutrina coerente de interpretação do mundo orientada para determinadas escolhas sociais e políticas, ou como ferramenta de dominação, que aliena a consciência humana e determina muitas formas de agir. São desta natureza o ódio ao estrangeiro associado aos nacionalismos, aquele aplicado pelos fascismos a certos grupos ou etnias, ou ainda o «ódio de classe» do qual se servem os setores dogmáticos do marxismo.

Assiste-se hoje ao reacender destes ódios por intervenção dos populismos e dos governos autocráticos, ainda que alguns invoquem a democracia representativa como fonte de legitimidade. Basta observar como em certos Estados, com recurso à manipulação da informação e à disseminação de falsidades, quem os governa ou neles procura conquistar o poder se serve de estratégias destinadas, em nome de um «povo» que dizem representar, a extremar posições, virando cidadãos contra cidadãos. Apoiam-se sempre nos sinais de descontentamento e na produção de um «nós contra eles» que tem a raiva acumulada como munição, traçando fronteiras entre campos antagónicos e inconciliáveis. 

A «cultura do ódio» é um vírus letal para a democracia, que acaba até por contaminar setores com propostas próximas, capazes de se digladiarem de forma agressiva, fechando-se em vez de estabelecerem consensos. A radicalização pode mesmo levar a que uma «cultura do ódio» se volte contra outra que recorre a idênticas armas. O sociólogo Manuel Castells viu a origem deste negativo estado de coisas «nas promessas que a democracia liberal não cumpriu», ampliando o universo do ressentimento, mas será mais completo ligá-lo também à propagação da desigualdade, ao retrocesso do conhecimento, à hipervalorização das identidades e à devastação causada pelas redes sociais e pelos algoritmos. 

O episódio intolerável ocorrido com Vinícius Júnior, e a dimensão de barbárie que o permitiu, não são naturais ou inevitáveis, mas sinais dessa vertigem de babélico rancor diante da qual, como lembra Giuliano da Empoli em Os Engenheiros do Caos, «ninguém está a salvo de um ataque». Contra ela, algo deve ser feito com urgência pelos poderes públicos democráticos e por quem tenha consciência da forma como asfixia as nossas vidas. Antes que regressemos à era das hordas e da guerra de todos contra todos com a qual, no distante ano de 1651, Hobbes legitimava o Leviatã, essa expressão monstruosa do poder mais absoluto e arbitrário.

Rui Bebiano

Fotografia de Igor Demidov
Publicado no Diário As Beiras de 27/5/2023
    Atualidade, Democracia, Opinião.