Perspetivas do poder local em ano de eleições

O poder local sinaliza muito do que de melhor produziu a nossa democracia com um historial agora de já perto de meio século. É também uma das áreas da coisa pública onde mais facilmente se podem encontrar marcas de bloqueio e insuficiência. Em ano de eleições para as autarquias, faz sentido projetar uma breve visão panorâmica desta componente fundamental da nossa vida coletiva. Ultrapassadas que foram as intensas, embora fugazes, experiências de democracia direta que foram ensaiadas durante o biénio revolucionário de 1974-1975, aquela que mais perto se encontra do cidadão comum, afetando o seu dia-a-dia, as suas escolhas e as suas expectativas.

Comecemos pelo início. Durante a ditadura, aquilo a que chamamos hoje poder local era limitado por pesados constrangimentos. Desde logo por não ser democraticamente eleito, sempre sujeito a nomeações governamentais, atribuídas apenas a pessoas fiéis ao regime e provindas das elites. Depois, porque tinham um âmbito de intervenção restritíssimo, diretamente subordinado à orientação, à autorização e à vigilância do poder central, intermediado pelos antigos governos civis. Além disso, dependiam nas suas iniciativas de um apertado regime de influências, sendo a obra realizada, para além de muito limitada na comparação com os projetos que conhecemos hoje, em regra atribuída ao favor de um governante ou à dádiva de um benemérito, cujo nome ficava associado ao melhoramento. 

A organização das autarquias, totalmente renovada nos agentes, estruturas e métodos com a vitória da democracia, e depois institucionalizada com a Constituição de 1976, onde no artigo 241º se declara que detêm «poder regulamentar próprio», alterou rápida e profundamente aquela situação fortemente limitativa e com marcas de imobilismo. Após a fase inicial, ligada às mobilizações do período revolucionário e a uma forte vontade de participação por parte dos cidadãos, muitas vezes em ligação com a organização espontânea das populações em luta pela satisfação de necessidades elementares, tornou-se um dos pilares centrais do regime democrático. Dinamizou então uma transformação radical da paisagem do país e da vida das populações, em larga medida associada a formas de descentralização e de auscultação do interesse público.

É certo que, dado o seu peso no novo sistema político, a sua complexidade orgânica e os recursos humanos e materiais que passou a envolver, o poder local tem sido muitas vezes um espaço de corrupção, prepotência e gestão desequilibrada da coisa pública. Formas de oportunismo ou falhas da vigilância fiscal e jurídica, deram lugar a situações lamentáveis, algumas bem conhecidas, ou a estados de persistente estagnação, mas este é o lado negativo que de modo algum pode ofuscar o que de muito positivo tem sido conseguido. Não apenas na gestão das necessidades básicas, mas nos domínios mais variados da educação, da saúde, do urbanismo, da habitação, da cultura, do património, do apoio aos setores sociais necessitados, inúmeras têm sido as experiências que foram capazes de definir, no território de cidades, vilas e aldeias, paisagens e formas de qualidade de vida antes de 1974 totalmente impensáveis.

Registo, por fim, três dos fatores de insuficiência que persistem. Em primeiro lugar, a falta de efetivo rasgo político da maioria dos programas eleitorais, em numerosos casos incapazes de pensar para além do «melhoramento» ou da reivindicação, num sentido autenticamente prospetivo e inovador. No domínio da cultura, por exemplo, são raras as propostas pensadas fora da gestão errática do existente, sendo a maioria vocacionada para um gosto ajustado ao menor denominador comum ou pautado pelo «kitsch». Em segundo, a concentração em projetos pessoais e centralizados, com mandatos excessivamente longos e onde os rostos e as clientelas pesam mais que os projetos de alcance. E em terceiro, a ausência de capacidade para mobilizar uma cidadania ampla e dinâmica, agregando muito dos cidadãos mais válidos e empenhados, ou os deixados à margem, e não apenas aqueles que tem sido possível juntar no momento do voto.

Rui Bebiano

Fotografia de Igor Demidov
Publicado no Diário As Beiras de 7/8/2021
    Democracia, Olhares, Opinião.