Comparar o que não pode ser comparado

Não é fácil distinguir de forma abrangente os conceitos de «esquerda» e de «direita». Descartando a ideia incoerente e perigosa segundo a qual se encontram hoje «ultrapassados» por uma prática política pragmática e gestionária na qual não existem verdadeiros antagonismos, é, todavia, possível diferenciá-los no que pode aceitar-se, sem grande controvérsia, como crucial. Para o historiador das ideias e politólogo Norberto Bobbio, a separação situa-se na diferença de atitude afirmada por cada uma das perspetivas face à ideia de igualdade. Neste sentido, enquanto para a direita contam sobretudo a liberdade de iniciativa e a concorrência entre os indivíduos, aceitando-se o caráter natural da desigualdade, para a esquerda é decisivo o papel do Estado como instrumento de proteção do conjunto da sociedade e como fator de igualitarização.

Já quando se procura estabelecer uma separação usando como critério o posicionamento perante o autoritarismo e a violência, a distinção torna-se mais difícil, dado que ao longo da História – desde a separação formal entre girondinos e jacobinos na Assembleia Constituinte que acompanhou a Revolução Francesa –, tanto a direita quanto a esquerda se serviram de ambos. Aliás, também no campo da defesa da liberdade de expressão e do sistema representativo, bem como nas dinâmicas do nacionalismo e das representações da liberdade, é possível encontrar figuras e movimentos alinhados dos dois lados. A questão da igualdade é, pois, absolutamente decisiva para traçar uma linha de fronteira entre esquerda e direita, sendo também nela que se filiam as diferenças de posição em questões sensíveis como a luta de classes, os direitos dos trabalhadores e das minorias, o racismo e a xenofobia, a política perante migrantes e refugiados, os direitos das mulheres ou os das pessoas e comunidades LBGTQ.

Estamos, pois, perante dois mundos tão diferentes quanto múltiplos dentro do seu próprio território, onde as escolhas são diversas e em constante transformação, sobretudo no campo da esquerda, em regra mais preocupada com as questões de princípio. Todavia, esta distinção entre esquerda e direita nem sempre é aceite, existindo quem, ao abordar o problema do extremismo – isto é, a defesa radical de posições que rejeitam toda a moderação – as descreva como possuindo sentido equivalente. Desta forma, nos últimos anos, com o regresso global de um agressivo extremismo de direita, seja ele parlamentar ou extraparlamentar, tem sido disseminada a errada ideia – com a qual o próprio se procura autolegitimar – de que este apenas «responde» ao seu equivalente de esquerda, com setores moderados de ambos os lados do espectro político a legitimar a existência de um com a atividade do outro, como se fossem «a mesma coisa». Pelo que ficou dito, mesmo aplicada às escolhas mais extremadas se pode ver que esta é uma comparação absurda, pois defendem valores, interesses e programas antagónicos. A afirmação é, porém, muito comum, como ainda há poucas semanas o testemunharam declarações de responsáveis do PSD a propósito do Chega, ou como alguma comunicação social se empenha em fazer transparecer.

É verdade que, por vezes, parte da esquerda oferece de mão-beijada argumentos para que esta comparação possa ser feita. São sobretudo três os vetores em que dá o flanco: em primeiro lugar, na abordagem do lastro histórico relacionado com os temas da violência, do sectarismo e do pensamento único, sem uma clara e catártica rejeição das experiências em que pactuou ou pactua com escolhas e regimes extremamente autoritários, repressivos e censórios; em segundo, na atitude nem sempre clara que muitas vezes afirma perante o valor do sistema representativo e das liberdades, desvalorizando com frequência esta dimensão democrática na vida dos regimes políticos e nas suas escolhas programáticas; e em terceiro lugar na forma como, tal como a direita o faz também, ao erguer muros onde deveriam construir-se pontes, o fazer até, inúmeras vezes, no seu próprio campo, num ambiente político onde a divergência apoiada em detalhes se instalou como uma atitude cultural natural, apesar de quase sempre estéril.

Esta realidade, não pode, porém, ser exacerbada, oferecendo argumentação para os setores que, em articulação com as estratégias do populismo e da direita, procuram conferir à esquerda, sobretudo à mais firme em alguns princípios, uma dimensão antidemocrática, por vezes criminosa, que na realidade – concorde-se ou não com os seus propósitos, e salvo em situações muito particulares e minoritárias de radicalismo e culto do ódio – na essência ela de modo algum possui. Se, seguindo o princípio da polaridade, uma das leis atribuídas ao filósofo grego Hermes Trismegisto, todos os corpos possuem dois polos que acabam por tocar-se, isto não se aplica à articulação entre os dois extremos do espetro político, uma vez que estes dizem respeito a corpos bem diferentes e com objetivos totalmente distintos, e principalmente com uma ideia de realidade, de futuro e de «bem comum» que são diametralmente opostos.

Rui Bebiano

Fotografia de Igor Demidov (Damaged, 2016)
Publicado no Diário As Beiras de 22/8/2020
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