Tenho fortes dúvidas sobre se a larga maioria dos cidadãos que têm tomado posições públicas sobre «o direito à vida», em temas tão diversos como a interrupção voluntária da gravidez, a fecundação ‘in vitro’ e o direito à morte assistida em casos de extremo sofrimento físico e psíquico, saberá o que é a eugenia e conhecerá ao menos um pouco da sua terrível história. Define-a, vale a pena lembrar, o esforço de «melhorar a raça humana» – o hoje caduco conceito de raça é aqui invocado propositadamente – através de um conjunto de práticas que passam pela seleção artificial, protegendo e salvaguardando aqueles que em determinado contexto são considerados melhores, mais fortes ou mais puros, e descartando os que são tomados como mais frágeis ou considerados impuros.
As ideias eugenistas remontam à Antiguidade, onde foram frequentes vezes aplicadas, como aconteceu na Grécia, e mais especificamente em Esparta, onde se abandonavam à morte os recém-nascidos considerados mais frágeis ou deficientes. Essas ideias jamais desapareceram completamente do trajeto humano, ressurgindo em diversas épocas sob diferentes formas. No final do século XIX foram objeto de uma ampla teorização, tendo o próprio termo «eugenia» sido então cunhado pelo sábio e viajante inglês Francis Galton, no sentido de definir o conceito de «bem-nascido». Por essa época, a Revolução Industrial tinha já ampliado a desigualdade social, enquanto a ideia de seleção natural, proposta por Charles Darwin, tinha aberto o caminho para a aceitação teórica de um processo de diferenciação que tendia a colocar os mais fortes no topo das sociedades e das suas estruturas de poder.
A década 1930 será em todo o mundo a época maior do eugenismo, incluindo aqui os Estados Unidos onde as esterilizações se multiplicaram. Todavia, foi na Alemanha nazi que se tornou mais violento; quatrocentas mil pessoas consideradas inferiores por sofrerem de patologias foram esterilizadas entre 1934 e 1945, enquanto os números do extermínio de judeus, ciganos ou homossexuais, «culpados» de pertencerem a etnias ou a grupos considerados inferiores pelo seu fundamento genético, pelas suas práticas ou pelas suas escolhas, foram ampliados para a escala dos milhões. Depois da Segunda Guerra, outras situações desta natureza foram replicadas em vários países, se bem que em escala numérica inferior, mantendo-se ainda hoje esta prática em diferentes cenários.
No contexto da presente crise mundial definida pela expansão da pandemia do coronavírus, e das necessidades de rastreio, tratamento e cura que ela impõe, o fantasma da eugenia tem pairado também. Principalmente nos países onde, por não existir equipamento médico para todos os infetados em situação extrema, ou por neles prevalecer uma concepção da sociedade onde prevalece o menosprezo pelos que não são rentáveis, isto é, pelos que já não asseguram o lucro dentro do sistema produtivo, tem sido invocada hipótese, ou mesmo a necessidade, de deixar morrer sem tratamento, ou por uma recusa liminar do internamento hospitalar, os doentes mais velhos.
Não se trata, perante situações extremas nas quais a morte é completamente inevitável e o doente já não está em estado de consciência, de «desligar as máquinas» – prática médica seguida desde há muito, mesmo onde ainda não é aceite na letra da lei –, mas antes de uma forma de discriminar os mais velhos, descartáveis por «menos úteis», ou por «terem já vivido o suficiente» (cito aqui declarações mencionadas nos jornais), numa lógica monstruosa que é, de facto, a mesma da eugenia. Aqui o critério que determina a decisão não é médico, mas político, e deixa-se morrer, não quem já não tenha hipótese alguma de sobreviver, mas quem, de acordo com tal lógica, se considera pertencer ao grupo dos mais fracos e não rentáveis. Uma intolerável crueldade, lançada contra a mais elementar noção de humanidade.
Rui Bebiano
Fotografia: «The Switch», de Jan RufeltPublicado originalmente no Diário As Beiras de 4/4/2020