Metamorfoses

Fotografia de Paolo
Fotografia de Paolo

Perante a possibilidade de um governo de esquerda, tem sido, por muitos dos políticos e comentadores que o contestam, invocada como um espetro e reiterada como um mantra a hipótese de regressarmos ao ambiente, aos desígnios e aos conflitos vividos no período, inevitavelmente agitado como o são todos os tempos de revolução, de 1974-1975. Para quem não o faz por cegueira ou por ignorância, essa aproximação só pode ser determinada pelo oportunismo e pela demagogia, e é tão facilmente refutável quanto rapidamente redutível a zero. A realidade é outra, o contexto internacional é diverso, os protagonistas são diferentes, o tecido social mudou, os partidos também foram mudando, e por aí adiante. E o tempo jamais volta para trás. A tal respeito, a conversa pode ficar por aqui e não vale a pena gastar muito mais latim.

No entanto, já o mesmo não pode dizer-se a respeito de uma possibilidade, de sinal contrário, que agora se pode colocar. Na realidade, se tudo correr bem, como se espera que corra, o acordo entre os partidos que constituem a maioria parlamentar de esquerda abre o campo a possibilidades que vão muito para além da legitimação de um governo chefiado por António Costa. A verdade é que, se a colaboração efetiva entre o PS, o Bloco e o PCP não exclui – nem tal seria desejável em democracia – a manutenção das diferenças programáticas, ideológicas, históricas, culturais e sociais que sob muitos aspetos os separam, abre também caminho ao irreversível derrube de algumas barreiras e de incompreensões instaladas desde há décadas, que vinham inviabilizando a comunicação entre esses partidos e entre os seus militantes.

Muitos portugueses que neles militam ou que com eles simpatizam vão finalmente perceber que a diabolização do outro foi muitas vezes excessiva, quando não um logro. E vão verificar que é possível, afinal, conversar com quem se considerava ser impossível o diálogo. O que a tudo e a todos inevitavelmente transformará, podendo até promover reacertos de natureza ideológica e estratégica. Claro que dentro de cada um dos três partidos continuarão a existir e a ter voz ativa, e por vezes algum lugar de destaque, fiéis depositários do sectarismo e da desconfiança, mas a sua dinâmica de fação e a sua margem de manobra irão por certo ficar bastante reduzidas. O que poderá traduzir-se numa brisa de ar fresco e de civilidade projetada sobre a experiência diária da nossa democracia. Representando uma derrota para a direita e para os quadrantes que fundam a sua intervenção política na intransigência e na exacerbação do ódio.

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