Papéis Roubados #16 (Ainda o Acordo)

Acordo Ortográfico

Porque me parece bastante claro, informado, equilibrado e pedagógico, porque nele reencontro o essencial daquilo que penso sobre o assunto, e também porque me parece importante arrefecer um pouco a fervura do debate em torno do Acordo Ortográfico, transcrevo o artigo de opinião, da autoria de Helena Topa, saído no Público de hoje.

Acordo Ortográfico: prós e contras
Helena Topa

Público Lisboa
19 de Fevereiro de 2012

O recente episódio da proibição de seguir a nova norma ortográfica por parte do novo diretor do CCB, Vasco Graça Moura, veio relançar, e incendiar, o debate sobre o Acordo Ortográfico (AO). Debate esse, em boa verdade, escasso, dado que, com honrosas exceções, apenas ouvimos as vozes dos detratores.

Tudo o que tenho lido e ouvido sobre o Acordo Ortográfico revela quase sempre posições extremas, a favor ou, mais frequentemente, contra. É claro que todos têm o direito de se sentirem lesados com estas mudanças, afinal aprenderam a ler e a escrever as palavras da sua língua de uma determinada maneira, e essa maneira de escrever, que se tornou automática, é agora alterada.

Mas o que mais me preocupa não é haver pessoas radicalmente contra ou a favor, é haver ainda muita ignorância e uma multiplicação de artigos de opinião que pouco fazem para esclarecer. Penso que caberia aos meios de comunicação social um papel pedagógico, expondo os factos, esclarecendo, chamando linguistas, professores, políticos e cidadãos a pronunciarem-se sobre o AO.

Este acordo é sobretudo político, fazendo com que os aspetos linguísticos, que deveriam estar à frente das preocupações dos redatores do acordo, quer em Portugal quer no Brasil, tivessem sido ou insuficientemente amadurecidos, ou demasiadamente sujeitos à lógica do acordo, o que implicou cedências, uma uniformização, mas não uma unificação. Não há uma norma absolutamente comum, não poderia haver.

Mas vamos aos factos. 1) Suprimiram-se as consoantes mudas c e p, mantendo-se quando são articuladas. 2) Suprimiram-se alguns acentos, sobretudo nas palavras graves. 3) Uniformizaram-se e clarificaram-se as regras da utilização do hífen. 4) Foram revistas as regras de utilização das maiúsculas e minúsculas. 5) Foram (re)introduzidas três novas letras no alfabeto, k, w e y.

Apresentados os factos — não exemplifico por questões de espaço, mas bastaria uma folha A4 para fazê-lo —, passo a expor a minha perspetiva de falante e escrevente nativa da língua portuguesa, também na qualidade de professora de português e de tradutora. Parecem-me óbvias as vantagens de muitas das alterações propostas pelo AO, sobretudo para quem aprende a escrever: a supressão das consoantes mudas, a uniformização das regras da hifenização e da acentuação facilitam a tarefa de quem ensina e aprende a ler e a escrever, sendo as restantes menos relevantes deste ponto de vista.

De entre todas, parece-me que a supressão das consoantes mudas, pela percentagem relativamente elevada de palavras sobre as quais incide, é especialmente importante. Os dois principais argumentos contra esta alteração prendem-se com: a) a etimologia e a tradição de uma certa norma gráfica e b) as exceções que esta regra admite. Quanto ao primeiro argumento, os detratores falam de uma descaraterização da língua, do perigo de fechamento das vogais que precedem as consoantes sacrificadas pelo AO; quanto ao segundo, são apontadas situações de possível dupla grafia, uma vez que, se se seguir o critério fonológico (“escrevo conforme falo”), é possível criar, no limite, regras “individuais” (ex.: se eu disser “característica” escrevo com C, se disser “caraterística” escrevo sem C).

Se em relação ao primeiro argumento, embora seja sensível ao critério etimológico da grafia, me custa aceitá-lo sem mais, em relação ao segundo, concordo com o risco de que estas exceções se revestem, sobretudo para quem tem de ensinar (e aprender) a ler e a escrever. De facto, como avaliar a escrita em função da articulação de cada aluno? Como ensinar a noção de norma se ela admite exceções e “regras facultativas”? Voltando ao primeiro argumento, o etimológico, posso contra-argumentar de várias formas: 1) Se a etimologia fosse um valor a preservar a todo o custo, não haveria sequer lugar a reformas ortográficas, como as de 1911 e 1945, em que se verificou, tanto numa como noutra, uma aproximação tendencial entre grafia e fonia (ainda deveríamos escrever “philosophia”, “addição” ou “auctor”, etc., se este critério fosse levado à risca); 2) A ortografia, ou forma correta de escrever, é um esforço para encontrar uma norma, o menos ambígua possível, de registar graficamente os sons da fala; como tal, implica convencionalidade e até um certo grau de arbitrariedade. Ora, parece-me ser desejável uma relação tão clara e inequívoca quanto possível entre a(s) letra(s) e os sons que pretendem transcrever, e penso que no caso da supressão das consoantes mudas se faz um avanço nesse sentido. 3) A análise de algumas palavras que são por certas pessoas articuladas com c ou p (e por outras não: ex.: característica vs. caraterística, sectorial vs. setorial, corrupção vs. corrução) mostra que estamos perante uma mudança linguística (fonética) ainda em curso, que tem vindo a ocorrer provavelmente desde o princípio do século XX. A nova norma trazida pelo AO dá conta dessa mudança, que não é ainda completa, pelo que admite, com as desvantagens referidas, a possibilidade de uma dupla grafia (em muito poucos casos, diga-se, e com tendência a desaparecer). 4) O argumento de que a ausência de consoante c ou p para abrir a vogal precedente não colhe. Quem apresenta este argumento, cita habitualmente palavras como setor, receção, aspeto, porque poderão vir a ser confundidas, respetivamente com s’tor (abreviatura de Sr. Dr.), recessão e espeto (o substantivo, não o verbo). E não sabe que este argumento não é totalmente fiável (por exemplo, nas palavras tactear ou exactidão o c não abre a vogal).

Em síntese: 1.º Parece-me que este acordo tem algumas vantagens (haver uma maior aproximação entre fala e escrita, e uma maior uniformidade de critérios, nomeadamente na hifenização); 2.º Tem, no entanto, muitas insuficiências e cria problemas novos onde não existiam (as “facultatividades”). 3.º Vai ser mais problemático para as escolas, para os professores que têm de ensinar a escrever e que se vão confrontar com as inconsistências da nova norma. 4.º Parece-me que algumas mudanças são empoladas e dramatizadas (e serão assim tantas e com tantos efeitos? Experimentem ler textos de jornal, aqui no PÚBLICO, por exemplo, onde as duas normas convivem, e não vão notar assim tantas diferenças). Aqui d’el-rei!, como irá um professor explicar ao pobre aluno que ‘Egito’ se escreve sem p e ‘egípcio’ com? Do mesmo modo que terá de explicar, por exemplo, que ‘dicção’ se escreve com c e ‘dicionário’ sem. E outras irregularidades (não só ortográficas) da língua. 5.º Ninguém é obrigado a escrever segundo a nova norma, a não ser que vá ser avaliado por isso. Fernando Pessoa recusou-se a aceitar a reforma ortográfica de 1911 e ninguém o multou por isso, Teixeira de Pascoaes também tinha muitas reservas em deixar de escrever “abysmo” com y porque, segundo ele, escrever abismo com i o convertia numa superfície banal.

Sou uma defensora, embora crítica, deste AO. Recuso-me a rejeitá-lo liminarmente, e pugno por uma revisão dos pontos que carecem de correção. É importante que surjam críticas, movimentos de desacordo, mas é importante também que haja uma discussão informada e serena, em que todos os lados e protagonistas estejam representados.

(A pedido da autora, este texto respeita as normas do AO)

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