Arquivos Anuais: 2011

Fazer acontecer

Alain Badiou

É um bom princípio evitar os juízos absolutos. Os factos nem sempre são aquilo que parecem, as pessoas são sempre mais complexas do que aparentam, as ideias ganham vida própria e crescem até se transformarem noutras. Mas do reconhecimento de um bom princípio não resulta necessariamente a sua aplicação: afinal enganamo-nos, precipitamo-nos, fazemos afirmações com uma dimensão de perfeição que depois revemos numa medida de incerteza. Excluindo os génios do mais extremo mal, os construtores das experiências totalitárias que não merecem perdão, a todos, mesmo àqueles de quem discordamos bastante, devemos sempre um crédito de confiança. Que merecemos também que nos concedam, como é lógico. É este, afinal, o princípio mais elementar da vida em sociedade se a não pensarmos à escala rancorosa de Maquiavel e Hobbes ou dos guias do fundamentalismo wahhabita.

Esta arenga serve para legitimar o recurso a algumas ideias de Alain Badiou que me proponho olhar. Dele rejeito, sem dúvida, de maneira completa e liminar, a aproximação a princípios e a experiências dos quais a História comprovou já o cunho monstruoso. Adianto quatro recusas. A primeira é o elogio da Revolução russa de 1917 e da Revolução Cultural chinesa enquanto actos de violência colectiva que funcionaram como inequívocos factores de emancipação. A segunda é a censura da dimensão policroma, que o filósofo considera pobre, inútil e frouxa, da fase crítica da modernidade (ou da «pós-modernidade»). A terceira é a defesa da supremacia do «colectivo» sobre o «individual» e a negação do sufrágio universal, ao qual Badiou chama «sufrágio de egos», como prática basilar da democracia. E a quarta é a apologia de um «ideia orientadora» do processo histórico que de alguma forma possa substituir (ou prolongar) o que Lyotard designou como metanarrativas e podemos grosseiramente associar às defuntas ideologias. Estas linhas não invocam nem prometem nada que me pareça fundamentalmente bom. Pelo contrário.

Mas a dimensão dissentista de Badiou não se fica pela tentativa de renovação destes perigosos princípios. No recente «Second Manifeste de la Philosophie», fala-nos da capacidade da filosofia para promover «a desestabilização das opiniões dominantes», impondo aquilo que designa como a «pertinência revolucionária». O filósofo vê-a, certamente, como parte de uma estratégia combativa, capaz de projectar a renascimento do ideal comunista e a recusa da democracia representativa. Mas é também aqui que adianta uma crítica a este sistema que faz sentido: ele «admite adversários, mas não inimigos», excluindo todo aquele ou tudo aquilo que possa ser «portador de uma outra visão das coisas, de uma outra regra do jogo que não seja a dominante». Rejeita pois essa luta em campo aberto que define as grandes viragens. Partidos e sindicatos, que apesar das diferenças se batem no respeito pelas regras do jogo, tornam-se então cúmplices da simples «gestão do possível», colocando num horizonte improvável a possibilidade de uma mudança radical de políticas. A hipótese mais certa de mudar de vida.

É justamente esta crítica que retiro das posições de Alain Badiou como útil. A possibilidade de desenvolver a convicção de que o modelo de sociedade em que vivemos não é único e inevitável. Quando declara, em «The Communist Hypothesis», artigo publicado em 2008 pela New Left Review, que «o tema de uma emancipação da humanidade não perdeu nenhuma da sua força», ou então, como o fez em entrevista à Philosophie Magazine, quando diz que o ideal de comunismo que concebe «repousa sobre uma ontologia da multiplicidade», está a abrir-nos portas que apontam também para a possibilidade de demolir o capitalismo sem cair na utopia tirânica e com péssimas provas dadas do «homem novo». Termina aqui, no entanto, a simpatia que sou capaz de registar. É que, contra Badiou, não consigo ver como pode conceber-se uma sociedade renovada, mais justa e capaz de aceitar o múltiplo, quando se sugere o eclipse do individual em detrimento do colectivo e se declara a necessidade de um «projecto» (uma ideologia? um programa?) que oriente a mudança. A ideia de emancipação, encaminhada de forma centralista e apoiada na gestão da violência, não pode voltar a ter, como teve no passado, o rosto de uma nova escravidão.

É preciso partir ainda muita pedra para se chegar a algum lado neste campo. Mas a ideia «badiouana» de um «fazer acontecer» como factor da transformação parece, essa sim, corresponder a um bom e útil princípio. A aplicar desde já.

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Chuck B. Goode

    Desde que começou a tocar em público e gravou o primeiro hit da história do rock ’n’ roll – «Maybellene», de 1955, ainda com um costela nos blues – Chuck Berry viu nascer, crescer, vencer, arruinar-se, trair ou morrer sucessivas gerações de rockers. Ontem, aos 84 anos, depois de uma hora de concerto em Chicago, sentiu-se mal, desmaiou e bateu com a cabeça no piano em que tocava. Assistido no local, retomou o concerto, que abreviou por se sentir «um pouco cansado». Já não se fabricam motores assim. [Aqui CB com Keith Richards em «Roll Over Beethoven»]

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      Apontamentos, Música, Olhares

      Uma mudança anunciada?

      A oliveira

      Em Março de 2006, dois reputados professores universitários de ciência política e de relações internacionais, John Mearsheimer, de Chicago, e Stephen Walt, de Harvard, publicaram na London Review of Books um artigo, intitulado «The Israel Lobby», que correspondia à versão reduzida de um outro, escrito a pedido da Atlantic Monthly mas por esta rejeitado. O carácter controverso do tema suscitou rapidamente uma enorme disputa, envolvendo sobretudo partidários inflexíveis e detractores apaixonados e levando ambos os autores a sentirem a necessidade de desenvolver os seus argumentos em livro.

      De uma forma bastante simplificada, estes argumentos traduziram-se na identificação de pessoas e de organizações que se foram empenhando, ao longo de décadas, na construção de uma política externa norte-americana acentuadamente pró-Israel. Associada a este trabalho, desenvolvido de uma forma bastante exaustiva e apoiado em testemunhos, documentos e factos bem identificados – não fosse ele um trabalho de investigação académica –, adiantou-se ainda a ideia segundo a qual esta relação tem sido tão prejudicial para os interesses americanos quanto para a formulação de uma política externa israelita verdadeiramente independente e dialogante. Ao longo de mais de seiscentas páginas, sucedem-se então as informações sobre o complexo processo de constituição do lóbi, quase inexistente quando da fundação do Estado de Israel mas gradualmente erguido a partir da época da Guerra dos Seis Dias (Junho de 1967).

      Numa recensão crítica a este livro publicada no diário Haaretz, tradicionalmente identificado com uma certa esquerda secular israelita, Daniel Levy, que foi conselheiro político do primeiro-ministro e integrou delegações destinadas a negociar a paz com as autoridades palestinianas, concluiu que para poder entrar numa era de maior sanidade e de revisão da política de ocupação, Israel deverá pois repensar o seu relacionamento com o lóbi americano, mas não exclusivamente judaico, que tem favorecido um intervencionismo cada vez mais agressivo. Uma posição que claramente reforça a importância desta obra, do intenso debate que suscitou, da barreira de silêncios e cumplicidades que permitiu transpor. E da mudança que poderá anunciar.

      [John J. Mearsheimer e Stephen M. Walt, O Lóbi de Israel e a política externa dos EUA. Tinta-da-China. Trad. de Rita Graña. 608 págs. Adaptação de um texto publicado na revista LER de Dezembro de 2010.]

        Atualidade, Olhares