Eu, nós todos, e os Beatles

The Beatles

Sempre que falo sobre a afirmação triunfante da música e da cultura pop nos inícios da década de 1960 para um público jovem, deparo com uma boa dose de compreensão, ou mesmo de simpatia, se evocar Elvis Presley ou Jim Morrison. Mas a referência aos Beatles é invariavelmente acompanhada de sorrisos trocistas, denunciadores de uma certa dificuldade em compreender, ou em aceitar, o papel dos fab four em todo aquele movimento. «Quem? Aqueles tipos de franja ridícula que cantavam umas coisas mais ou menos melosas, mais ou menos kitsch, para damas meio passadas?» No momento em que o lançamento mundial de uma edição totalmente remasterizada da sua discografia completa faz regressar às primeiras páginas os rostos e a memória dos quatro de Liverpool, apetece-me porém voltar ao tema.

Tanto quanto sou capaz de recuar até à pré-adolescência, confino a minha percepção inicial do papel dos Beatles neste mundo a três momentos. Num primeiro, o mais antigo, recordo a descoberta em casa de uns primos de um single em vinil que destacava Love Me Do e ouvi obsessivamente, com grande demonstração de paciência da parte dos meus tios, ao longo de semanas. O segundo momento foi marcado pelo meu encontro de rapaz de província com o número especial da revista francesa Salut les copains, dedicado ao grupo inglês em plena beatlemania e repleto de imagens daquela que então me parecia ser a mais excitante forma de vida possível à face da Terra. A terceira evocação leva-me ao reencontro do meu primeiro pecado mortal, consumado quando invejei profundamente L., um tipo um pouco mais velho que eu, proprietário de um daqueles casacos de gola «à Beatle» – isto é, sem gola –, que calçava umas botas pontiagudas de elástico lateral e fazia uma imitação, a meu ver perfeita e com grande êxito entre o público feminino, de Twist and Shout.

Nessa altura, a minha percepção daquela música e daquelas imagens era totalmente acrítica e marcada pela absoluta admiração. Por uma sedução, percebi-o depois, suscitada pela desafectação melódica daquelas canções, pela simplicidade dos textos estritamente vivenciais, pelo ritmo vibrante, então único. Marcada também, como estava a acontecer com milhões de jovens em todo o mundo, pela atracção por uma atitude cénica desafiadora e sem termo de comparação, pela ostentação da alegria e da brincadeira face a uma cultura dominante «adulta» que as procurava espartilhar dentro de limites «aceitáveis». Só depois, muito depois, encontrei nas canções dos Beatles – aquelas que já não oiço mais ainda prefiro, as dos primeiros álbuns, de Please Please Me, saído em 1963, até Revolver, lançado em 1966 – alguma coisa mais: o seu papel de território pioneiro sobre o qual outros puderam depois projectar sob os holofotes uma percepção poética e hedonista do mundo, uma naturalização do amor e do sexo descomprometido, uma atitude independente e de certa maneira rebelde. Característica dessa cultura juvenil, então em formação, que inflectiu a experiência do quotidiano dos filhos do Pós-Guerra, para lançar os fundamentos de um mundo que definiu a nossa contemporaneidade.

Mas claro que, para um número crescente de pessoas, a compreensão deste papel pela via única da inteligência ou dos manuais de história, mesmo a projectada pelos média ou reproduzida – tal como vai acontecer a partir desta semana – num jogo de computador, será sempre insuficiente. Por muitas reedições que se façam da discografia parcial ou completa dos Beatles, John, Paul, George e Ringo morrerão um dia, definitivamente, com o eclipse final dos últimos daqueles que um dia de alguma forma ajudaram a libertar. Não vislumbro os nossos descendentes do século 22 a trautearem No Reply ou Ticket to Ride. Entretanto, podemos divertir-nos ainda um pouco.

    Memória, Música, Olhares.