Um Z contemporâneo

Zorro

Adaptação de um artigo publicado em 2006 na revista Penetrarte

Em A Máscara de Zorro (1998), o filme de Martin Campbell anterior à sequela A Lenda do Zorro, o herói na pré-reforma (Anthony Hopkins) passava o testemunho ao jovem bandoleiro (António Banderas). Entretanto saiu Zorro – O Começo da Lenda, o romance de Isabel Allende no qual se forja a educação e a sina da velha figura de capa, espada e mascarilha. Na página inicial, uma frase curta – «Existem muito poucos heróis de coração romântico e de sangue leviano. Digamo-lo sem rodeios: não há nenhum como o Zorro» – arrasta o leitor para um universo de mistério e intriga que a chilena reinventa, reconduzindo o personagem às suas origens e avançando um passo mais na sua renovação.

O nascimento do Zorro conta-se em poucas linhas. Quando o galante Douglas Fairbanks casou com a diva Mary Pickford e os dois seguiram em wedding-trip para a Europa – uma espécie de viagem de núpcias para americanos ricos – durante a travessia do Atlântico, Fairbanks, entediado com a monotonia do horizonte, entreteve-se a ler The Course of Capistrano, uma espécie de folhetim publicado em 1919 na All-Story Weekly pelo autor de novelas e de argumentos Johnston McCulley. Por sua vez, este havia-se inspirado em Life and Adventures of Joaquin Murieta: The Celebrated California Bandit (1854), uma obra de pulp fiction do escritor índio John Rollin Ridge (também lembrado por alguns como Yellow Bird). A trama do livro interessou Fairbanks a tal ponto que, de regresso a Hollywood, produziu e protagonizou de imediato a película A Marca do Zorro (1920). Inspirado na figura recriada por McCulley, deu-lhe no entanto um toque pessoal, compondo alguns dos seus traços físicos e inventando o sinal «Z», desenhado, como toda a gente sabe, com três estocadas rápidas e destras de florete. As legendas iniciais – «Na Califórnia, há cerca de cem anos, apareceu um cavaleiro mascarado, protector do povo e carrasco dos seus sanguinários opressores» – fundaram o mito contemporâneo, construído ao longo dos anos através de variantes conotadas com um sentido justiceiro comum. De facto, mesmo nas versões mais inócuas das andanças do Zorro e dos seus sucedâneos – como os que aparecem na série de televisão produzida entre 1957 e 1959 pela Disney, na banda desenhada do Lone Ranger (com o seu companheiro de nome Tonto), semi-plagiada na década de 1930 por Striker e Arbo (adaptada no Brasil e em Portugal como Zorro), ou ainda no talhe essencial da figura redentora de Batman, de Bob Kane – reconhece-se como central a função reparadora daquilo que carece de ser reparado, mesmo quando esta acção é colocada ao serviço de uma ordem dominante que jamais é posta em causa.

O secreto alter-ego do fidalgo Diego de la Vega combate pois num campo fechado, dentro do qual se enfrentam o bem e o mal, a justiça e a injustiça. Porém, ao contrário daquilo que acontece com a maioria dos heróis, o Zorro «original» questiona a harmonia entre ordem e justiça, durante muito tempo preponderante nas narrativas de aventura, actuando contra o colonizador espanhol que dá rosto (este visível) a uma ordem injusta. A sua acção desenvolve-se pois enquanto «agente da desordem», propondo uma reordenação subversora. No romance de Allende, este papel surge ampliado, através da enunciação de valores fundamentais que presidem à sociedade secreta masculina («A Justiça»), dedicada a defender os pobres e os indefesos e a contrariar os seus opressores, na qual o jovem Diego será integrado. A pormenorizada descrição do ritual de iniciação do herói nesta sociedade, ocorrida em Barcelona, aproxima-a de alguns dos princípios e das práticas da maçonaria, já anteriormente relacionados com a figura lendária do Zorro pelo italiano Fabio Troncarelli, que especulou sobre a antiguidade do mito e a associação do «Z» ao signo semítico Ziza, emblema da luz e da energia vital. O confronto entre sombra e a luz, enquanto elemento central na definição da experiência maçónica, tem na vida do herói uma presença efectiva, e, ainda que a existência dessa aproximação na criação do mito permaneça duvidosa – é-o menos na refundação proposta por Isabel Allende, onde surge como uma evidência – não deixa de vincar a submissão do seu comportamento a uma atitude de luminosa redenção num cenário de trevas e de maldade.

Por outro lado, a dupla identidade – o frívolo, ocioso e ligeiramente efeminado Don Diego dando disfarçadamente lugar ao corajoso e hiperviril justiceiro mascarado – numa ambivalência que há havia sido praticada por heróis mais antigos, como Scaramouche ou o aristocrata contra-revolucionário Pimpinela Escarlate, reforça as linhas de desenvolvimento desse combate, opondo a um tempo «normal», no qual o aparente compromisso em relação à ordem estabelecida se torna indispensável, um outro, sobreposto e tomado como «irregular», suscitado pela intervenção arrojada do herói. Da oposição entre ambos os tempos, sobressai sempre a capacidade regeneradora da «anormalidade».

É, no entanto, preciso dizer que não existe no Zorro traço algum do revolucionário profissional, inteiramente dedicado a um projecto colectivo, submetido a um imperativo histórico e munido da eficácia implacável do modelo bolchevique. Mais próximo do individualismo aventureiro dos anarquistas – veste-se de negro, aliás, o que de resto lhe fica muito bem – o Zorro opta antes por praticar uma «poesia em actos»: no seu horizonte, a realidade, que se pode qualificar de prosaica, é rejeitada, em proveito de uma concepção romanesca da vida, poética pois no sentido moderno do termo, mas que integra, ao mesmo tempo, uma componente de participação cidadã. Esta definição simultaneamente individualista e socialmente empenhada do seu lugar na acção, associada a um sentido profundamente lúdico da existência – o humor, a ironia, a brincadeira, são também marcas obsessivas características do personagem -, encontra-se na raiz do retorno contemporâneo deste super-herói de duas caras. Neste mundo nosso desprovido de causas de uma dimensão meta-histórica, mergulhado no hedonismo e na vertigem individualista hipermoderna, alheio por via da regra aos grandes movimentos colectivos destinados a impor um sentido ao fio do tempo, o justiceiro do «Z» eleva-se como um sinal atraente da capacidade pessoal para imaginar iniciativas e situações que, apesar de incidentais, podem enunciar uma tentativa remissora.

Diferentes gerações, em distintas regiões e circunstâncias culturais, têm-se empolgado com as proezas difíceis e arrojadas, sempre regeneradoras, do ágil semideus da cara vendada. Vão fantasiando, provavelmente, o grande dia no qual poderão concluir os monótonos episódios do seu quotidiano tristonho com um sorriso levemente trocista e um estalo de chicote: «- Até à vista, senhores! – despediu-se o Zorro, não fazendo caso das balas que passavam roçando-o». Um belo projecto de vida, se querem saber.

    Memória, Olhares.