Arquivos Mensais: Agosto 2006

Casa Grande e Sa(e)nzala

É provável que alguém ainda hoje encontre glamour na história da gata borralheira. Pessoas que vivem de romantizar o passado, leitores da Hola ou da Nova Gente, candidatos a uma promoção social rápida através de concursos televisivos ou figuração em novelas. Olhar o comércio das relações como via possível para uma vida melhor ou alguns minutos de fama. Mas encontro uma infinita tristeza no testemunho transcrito hoje pela revista Pública em artigo sobre o parque termal do Vidago. Corriam os anos 40, recorda uma então jovem frequentadora das pensões «mais em conta» da localidade: «Quando havia bailes no Palace não podíamos entrar, mas nós trazíamos toilettes, vestido comprido, salto alto, e os rapazes vinham todos do Palace para a nossa beira e dançávamos à volta do lago.» Predadores descendo as escadaria do hotel disfarçados de príncipes encantados. A desigualdade como normalidade. Era isto também o salazarismo e a vida na província.

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    Do inimigo americano

    Made in America
    [retomando…] Como se sabe, é nas ocasiões difíceis que se mostra o melhor e o pior de nós. As emoções tolhem-nos então a consciência, falamos sem controlar as palavras, gritamos juras que reconhecemos logo serem um pouco exageradas. Diz o povo que «é do vinho!» Nessas alturas, é necessário aplicar um esforço suplementar para se evitar que o mais fundo de nós – os fantasmas, as raivas, os desejos, as expectativas – tolha os nossos actos. Infelizmente é isto que acontece com muitos dos «argumentos» de uma esquerda quase exclusivamente orientada para um espaço mítico cujos reflexos reverbera sem pensar duas vezes. O resultado é, para além do espectáculo triste de uma esclerose exposta em público, a oferta de argumentos aos sectores neoconservadores, cedendo-lhes o espaço de manobra que fora historicamente da esquerda e lhe facultara, durante décadas, a afirmação de uma efectiva superioridade moral.

    Recorro, para ilustrar esta situação, a dois extractos da crónica de Constança Cunha e Sá saída no Público de hoje (citações algo longas mas necessárias): «A esquerda, naturalmente, depois de perder o seu “sol na terra” e de ter assistido à destruição sistemática dos seus principais mitos, descobriu no antiamericanismo primário, não só a sua grande bandeira, mas principalmente o seu último (e único) combate. Falhada a gloriosa aventura do comunismo e desfeitos os sonhos da ideologia, resta à esquerda aprender a viver num mundo que a contraria e escolher um inimigo que lhe restitua a identidade perdida. O resultado deste duvidoso exercício é conhecido: um delírio teórico que despreza a realidade e um moralismo sem moral que leva à defesa dos pobres e dos oprimidos e ao elogio de regimes que sobrevivem (e sobreviveram) à custa de uma imensidão… de pobres e de oprimidos.» Mais adiante, CCS refere-se a Miguel Portas, criticando o facto de este ter andado «pelos bairros destruídos de Beirute de braço dado com os heróis do Hezbolah», e lembrando que «este seria prontamente liquidado, se fosse exportado para o Irão, o principal patrocinador dos seus corajosos “resistentes”». E acrescenta: «Mas não é isso que impede este defensor da igualdade entre os géneros, dos direitos dos homossexuais e da separação entre o Estado e a Igreja de apoiar implicitamente um regime teocrático que se distingue pela violência com que trata as mulheres e pela intolerância fatal que nutre pelos homossexuais. O antiamericanismo militante, potenciado pelos erros da Administração Bush, supera qualquer tipo de incoerência e junta, na mesma causa, os mais improváveis parceiros.» Não havia necessidade de dar assim o flanco.

    Publiquei há cerca de 5 anos uma pequena crónica sobre a questão do «antiamericanismo como dogma» [ver nota no final deste post], o qual justifica actos espúrios como aquele corporizado por MP (pessoa que prezo como sinal animador, espero que para continuar, de uma «esquerda que pensa» prospectivamente). Não sendo suspeito de simpatias para com as políticas de Bush, gostaria, todavia, de deixar à reflexão algumas palavras de Jean Baudrillard escritas há cerca de duas décadas atrás: «Não consigo deixar de achar que este universo completamente apodrecido de riqueza, de poder, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil, tem ar de manhã do mundo. Talvez por o mundo inteiro continuar a sonhar com ele, enquanto ele o domina e o explora.» Talvez, acrescento, por, antes ainda da revolução jacobina, ter nascido ali a «erva daninha» da melhor liberdade.

    A esquerda que não integrou completamente a lógica neoliberal do sauve qui peut precisa reflectir sobre isto. Como atitude democrática, solidária e construtivamente utópica sobreviverá à usura do tempo e a esta dramática perda de capacidade para compreender o mundo de forma dinâmica e preparar os processos de mudança. Espera por uma refundação que, como todas as refundações, implica a observação dos alicerces e a eclosão de uma série de explosões. Gostaria que não fossem necessárias também umas quantas implosões.

    Nota: O artigo que mencionei, publicado originalmente em 2001, encontra-se aqui em formato PDF.

      Opinião

      A velhice de Sciascia

      A velhice de Sciascia
      Um dos primeiros sinais do envelhecimento mostra-se na relação com os processos de mudança. O inexoravelmente envelhecido – seja uma pessoa ou um sistema de ideias – revela uma dificuldade crescente em incorporar as imagens, os acontecimentos, os gestos que não tiveram lugar na fotografia imutável do seu pacto inicial com o mundo. Mede então os sucessivos presentes pelo grau de proximidade ou de semelhança com o modelo original. A partir de um certo limiar, essa teimosia passa a alimentar um processo incontornável de fuga perante o real, o qual deverá moldar-se forçosamente às suas expectativas. Trata-se de um trajecto que se repete de forma dolorosa, legando ao presente os sinais da decadência e acelerando os passos para a irrelevância.

      Uma recente revelação reafirmou-me este elo. Uma leitura deste verão – Cosa Nostra. História da Máfia Siciliana, de John Dickie (Edições 70) – mostrou-me o especto da velhice de Leonardo Sciascia. Quando do combate dos juízes Falcone e Borsellino contra a relação entre o crime organizado e o poder político em Itália conduziu, pela primeira vez, à possibilidade de desmantelamento efectivo da organização siciliana – facto que determinaria o assassinato dos dois juízes em 1992 – Sciascia, já velho e bastante doente, insurgiu-se contra o trabalho de ambos por este colocar em causa a imagem sobre a qual, ao longo de toda a vida, havia efabulado a sua ilha natal. Escreveu então no Corriere della Sera: «Quando me insurjo contra a máfia isso também me faz sofrer, porque dentro de mim, tal como dentro de qualquer siciliano, ainda está vivo um resíduo de mafioso.» Via assim o desmembramento daquela organização «como uma cisão, uma laceração.» Desta maneira, em nome do mundo que muitos anos antes concebera como seu, e cujos fundamentos estavam a ser abalados por um volume de informação sem precedentes, o autor de O Dia da Vergonha – com muitos outros escritos seus um elemento central de formação da consciência internacional anti-máfia que nos anos 80 transformara a série televisiva O Polvo num êxito de audiências e o comissário Corrado Cattani num herói do imaginário europeu – Sciascia recusou mudar e preferiu sair coerentemente deste mundo, concebendo-o como sempre fizera. Um fim triste e, infelizmente, muito comum.

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        A ratoeira e os estrábicos

        No último número do Courrier Internacional, o dossier «Líbano: escrevem os intelectuais» integra testemunhos de escritores de Israel, da Síria, do Iraque e do Líbano. Todos eles procuram, com o êxito possível, permanecer lúcidos debaixo do fogo da artilharia e do rumor dos brados da rua. Natural de Beirute, Wajdi Mouawad – não interessa esclarecer aqui em que família nasceu ou a que deus é suposto orar – conclui a sua colaboração com um grito de dor que deveria ser ouvido por todos aqueles que se apressam a colocar o bem e o mal inteiramente de um dos lados. «O que é aterrador não é a situação política», diz ali Mouawad, «é a ratoeira em que a situação nos coloca e nos obriga, face à impotência de agir, a fazer uma escolha insuportável: a do ódio ou a da loucura.» Num outro artigo, o poeta sírio Adonis fala-nos do espectro de «uma regressão de três mil anos», determinada pela possível destruição do oásis cultural libanês e pelo triunfo previsível dos extremismos religiosos: «O perigo que hoje se corre é o de um regresso ao tempo dos profetas, dos apocalipses, das guerras e do desespero. Um regresso ao absolutismo.» Coisa que não parece incomodar muito as certezas dos nossos analistas estrábicos a propósito de quem são os bons neste conflito decisivo. Vale a pena comprar este número do CI e lê-lo com os olhos abertos.

          Opinião

          O fascismo que existiu

          Concordo muitas vezes com as observações jornalísticas de Vasco Pulido Valente. Muitas vezes, divirjo também do seu tom azedo e, em alguns momentos, gratuitamente provocatório. Para além de uma atenção crítica ao que se passa à sua volta – o que corresponde, actualmente, a uma atitude relativamente rara na imprensa diária – percebe-se uma grande capacidade para se dirigir directamente ao essencial das questões, contornando as meias-tintas próprias de quem tem pavor de chegar a uma conclusão dolorosa ou de levantar problemas que se metam com os fantasmas pessoais. Não posso, porém, deixar de discordar da posição de Pulido Valente quando há dias, em crónica saída no Público, resolveu levantar-se contra o movimento que tem procurado impedir que se destruam ou desvirtuem espaços e edifícios que, de alguma maneira, sinalizam a memória do país que era o Portugal dos anos do Estado Novo.

          VPV referia aí, e bem, uma verdade que algumas pessoas insistem em negar, ou sequer em aceitar ouvir: o país de Salazar e de Caetano jamais viveu um fascismo típico, com a dose de violência e a dimensão totalitária que se sabe ter acontecido em países nos quais este fundamentou a razão de Estado, ou junto de movimentos que não lograram alcançar o poder mas lutaram por governos anti-democráticos, chauvinistas e intransigentes. O salazarismo foi essencialmente um conservadorismo autoritário, beato e pacóvio, que temeu sempre a febre de violência e de expansionismo do Estado que nas décadas de 1920 e 1930 envolveu principalmente a maioria dos cidadãos da Itália e da Alemanha (se aceitarmos o nazismo como um «fascismo» germanizado). A repressão e a censura, tal como a mobilização das consciências através da propaganda e da educação, foram de facto, entre nós, muito mais «benévolos» do que naqueles lugares. Nisto, VPV tem pois toda a razão.

          Só que, apesar dessa «benignidade», o regime salazarista conformou, em Portugal, uma sociedade fechada, desigual, desumanizada, repressiva, arcaizante, cujos sinais aparentemente incorpóreos permanecem em muitos dos nossos atavismos, mas cuja conformação visível se situa nas práticas objectivas e na herança cultural que nos legou. Basta – recomendo-a a quem para tal tenha paciência – uma leitura atenta dos interesses e dos códigos evidenciados todos os dias pela maioria da nossa imprensa regional. Aí, sobrevive ainda o nosso «fascismo» caseiro. É nesse sentido que, enquanto «lugares da memória» e nichos de resistência, as prisões políticas ou os edifícios da Pide – em conjunto com todos os espaços simbólicos que despertam para a lembrança daquela época – merecem ser preservados. Ficarão como sinais de que por aqui existiu, legando ao presente as suas marcas repulsivas, um tempo de ordem e barbárie.

            Opinião

            Cuba, hoy

            Fidel
            Directamente dos cuidados intensivos, reclamando capacidades que estão para lá do humano, Fidel «fala» de si próprio e do lado visível da doença aos compatriotas e simpatizantes de todo o planeta. Não se esquece de deixar claro que, apesar das hemorragias e do peso dos anos, permanece «atento a tudo o que se passa». O que pode espantar é a forma como a generalidade dos meios de comunicação aceita este logro sem pestanejar, veiculando-o como notícia e não como o acto de propaganda e de prestidigitação que é. Nas consciências dos que dele não retiram senão o valor simbólico e o impacto mediático, o «mito cubano» guarda ainda uma grande parte da sua força e antigo sortilégio. Se retirarmos os gusanos de Miami, ninguém parece particularmente satisfeito com o triste cenário que envolve agora o velho comandante dos barbudos.

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