Os amigos de Putin

O dramático conflito que tem vindo a opor a Rússia e a Ucrânia, e que nas últimas semanas tem sido ampliado a uma escala que tem feito com que possam escutar-se bem os tambores da guerra, está, por cá, a ser objeto de escolhas bastante eloquentes por parte do PCP e de uns quantos cidadãos opinantes que este partido de algum modo influencia ou que com ele coincidem. A opção aqui é bastante clara e inequívoca: para eles, a Rússia agressora representa de facto o Bem, enquanto a Ucrânia agredida é uma clara expressão do Mal. Esta escolha deriva de pressupostos expressos e de outros que, não sendo pronunciados, são perceptíveis por quem não esteja totalmente distraído. 

Os expressos são óbvios: o governo da Ucrânia tem o apoio formal da União Europeia, dos Estados Unidos e da NATO, existindo, nas áreas ucranianas próximas da fronteira uma maioria da população de ascendência russa, o que legitimaria as ambições territoriais de Moscovo. Chega-se a partir daqui a posições consequentes com outras expressas num passado recente. Se para o PCP, o inimigo principal é apenas o imperialismo norte-americano, todos os seus inimigos, amigos serão. Ainda que do outro lado esteja um imperialismo em expansão, associado a um regime hiper-nacionalista e militarista, que manipula as eleições, persegue os opositores, censura a informação, usa a mentira e a contrainformação de uma forma massiva, e coabita visivelmente com a cleptocracia. Para quem assim pensa, os equilíbrios da geopolítica não terão, afinal, mudado muito desde a queda da antiga URSS. Já a referência à «maioria russa» é pretexto para legitimar a agressão, não importando que a escolha contradiga a habitual retórica sobre essa «não-ingerência» em política externa que apenas vale quando importa que valha. 

Mas existe ainda um pressuposto que pode dizer-se escondido, tal como, seguindo a popular expressão, se esconde o gato com o rabo de fora. A mitografia enraizada no PCP continua a valorizar como apenas positiva a experiência histórica da antiga União Soviética, incluindo a dos anos negros do estalinismo puro e duro, da qual se excluem apenas os anos e os agentes diretos dessa deriva da «contra-revolução» com que identificam o tempo do «traidor» Gorbatchev, da maldita «glasnost» e da nefanda «perestroika». A imaginada aproximação da atual Rússia a essa mitografia, e uma espécie de íntimo desejo de uma reviravolta que por ali recoloque «a história nos eixos», determinam um cego apoio a Vladimir Putin e ao que este esperançosamente julgam poder representar na política mundial.

Naturalmente, o cenário é complexo e os responsáveis ucranianos não são propriamente uns anjos. Mas representam um governo hoje reconhecidamente democrático, que está no seu direito a fazer escolhas, e um Estado que tem vindo a ser agredido, inclusive com a ocupação efetiva, que já tem diversos anos, da rica Crimeia e de regiões fronteiriças da Ucrânia oriental. O avanço até Kiev, agora ameaçado pela Rússia como chantagem para evitar a adesão do Estado vizinho à NATO, pode até não se concretizar, uma vez que as consequências seriam globais e prejudicariam também o poder instalado em Moscovo, mas acabará por conduzir a cedências que, de facto, questionarão uma soberania. Todavia, para os setores de opinião próximos do PCP, isto não parece ser problema. Para a opinião pública – e para o eleitorado – é, porém, mais um sinal da resistência do partido a abrir-se às mudanças do mundo pós-soviético e à complexidade atual de uma geopolítica que já não é essencialmente bipolar. 

Rui Bebiano

Fotografia: Soldado ucraniano perto da fronteira, Oleksandr Klymenko / REUTERS
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