É óbvio que o que está a acontecer no Afeganistão traduz uma enorme e manifesta derrota da política dos EUA para a região e mesmo para o mundo. E também, uma vez mais, da total ausência dela por parte da União Europeia. A tentativa de imposição forçada de um modo de vida jamais resultará em lado algum, ainda que por algum tempo possa parecer que isso está a acontecer. O próprio Joe Biden vem agora, de forma surpreendente, lavar as mãos e declarar que é impossível impor um modelo de sociedade a quem o não deseje. Pior ainda, da parte dos norte-americanos, é terem deixado cair os seus numerosos aliados locais, servindo-se de muitos deles e abandonando-os agora, quebrando todas as promessas, à mercê de quem não perdoará a escolha que fizeram ou a que as circunstâncias determinaram. Este é um enorme golpe no estado de graça e no prestígio internacional de que até agora Biden parecia gozar.
Mas regozijar-se, na prática, com esta derrota, destacando-a como o mais importante, como vejo algumas pessoas e organizações políticas da grande área da esquerda fazer, sabendo-se que ela implica o regresso ao poder dos taliban, com todas as terríveis consequências que isso comporta, é uma atitude eticamente inaceitável. Sabe-se das circunstâncias específicas da intervenção norte-americana, ordenada por George W. Bush na sequência do 11 de setembro de 2001, e logo depois do compromisso da NATO, como se sabe também que algo de globalmente positivo foi, ainda assim, ali possível para a maioria dos afegãos: vinte anos em que as raparigas puderam ir à escola, em que as mulheres puderam sair à rua de rosto descoberto e ter empregos, em que o santuário do terrorismo internacional da Al-Qaeda foi razoavelmente contido, em que milhões escaparam à violência ou à lavagem ao cérebro, quase acreditando ser donos das suas vidas e das suas escolhas.
Só esta perda é incomensuravelmente pior que tudo o mais, tornando imoral e vergonhosa qualquer exibição, ainda que só nas entrelinhas, de regozijo por ter acontecido aquilo que aconteceu agora. Por princípio, uma política de emancipação não se faz com invasões e guerras, é certo, mas também não pode fazer-se deixando os indefesos nas mãos dos seus piores algozes, ou esperando que resolvam o seu destino sem apoios. Neste momento, o verdadeiramente importante – e que é imprescindível exigir – é encontrar soluções diplomáticas para proteger pessoas desesperadas, de modo algum é mostrar satisfação pela derrota do arqui-inimigo norte-americano e dos seus aliados. Sabendo-se, para mais, que no terreno, para além dos sempre voláteis senhores da guerra locais, e já a dialogar com o novo poder, estão russos, chineses e iranianos. Que, obviamente, não estão ali por compaixão pelos homens e mulheres do Afeganistão, ou para sustentar os seus frágeis direitos.
Rui Bebiano
Fotografia: Reuters/Stringer