Alusão e cultura geral

Como sabe quem escreve com regularidade textos que contêm uma dimensão literária – sobretudo se estes forem de opinião ou de ficção, seja no romance ou na poesia –, uma das técnicas a que recorre muitas vezes é a alusão. Falo do recurso estilístico pelo qual se faz referência direta ou indireta a uma pessoa, a uma situação, a um livro, uma peça musical ou um filme, contendo uma carga simbólica ou representativa que se pressupõe seja do conhecimento do leitor e por este percebida. Faço isto muitas vezes e posso dar como exemplo uma linha de comentário publicado há pouco a acompanhar uma fotografia de ocasião. Quando nela escrevi «finalmente sábado» estava, como muitos e muitas notaram, a aludir a Finalmente Domingo (Vivement dimanche), o título do último filme de François Truffaut, estreado em 1983. E também ao próprio filme.

Naturalmente, muitas pessoas não se apercebem desta espécie de truque, e nem têm de o fazer, mas até há poucos anos, num certo padrão de público munido de razoável cultura geral, a possibilidade de existir quem entendesse que se tratava de um jogo e qual era ele seria bastante grande. Sei bem que o conceito de «cultura geral» contém aspetos hoje discutíveis – um deles a sua articulação com dimensões exclusivas do cânone ocidental ou com formas explícitas de eurocentrismo cultural –, mas integra a apropriação de uma dose muito grande de conhecimento, ainda que boa parte deste possa ser, sem dúvida, superficial ou efémero. Por exemplo, e continuando a usar a experiência pessoal, de muitos romances que só li depois dos catorze ou quinze, aos nove ou dez já tinha ouvido falar do título ou do seu autor, embora não mais que isso. E assim acontecia com inúmeras pessoas de diversas gerações, da minha também.

O problema é que o recuo deste tipo de conhecimento abrangente e multifacetado, notado mesmo em grande parte das pessoas que frequentam ou frequentaram mais recentemente o ensino universitário, exponencia a incapacidade para que grande parte de quem lê, ou de quem ouve, entenda agora aquilo que o autor está a tentar fazer ao usar a técnica da alusão. Como citar E la Nave Va a quem nem sabe minimamente quem foi Fellini? Aqui, como em tudo, o problema não se resolve com a simplificação excessiva ou com a redução ao menor denominador comum, mas antes com a insistência em aceitar que o leitor não é naturalmente burro e pode muito bem apreender aquilo que não está explícito. Se não for agora, mais tarde. Mas é verdade que os autores se exasperam bastante com isto: o que lhes parece apenas um recurso, um divertimento ou mesmo uma homenagem a algo ou a alguém, torna-se, para muitos dos seus leitores ou ouvintes, incompreensível.

Na imagem: Fanny Ardent e Jean-Louis Trintignant em Finalmente Domingo
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