Porque há tanta gente desta?

Vença quem venha a vencer, os resultados das eleições presidenciais norte-americanas têm suscitado uma dúvida legitima, mas que exprime alguma ingenuidade política. Quem a exprime parte do princípio segundo o qual os Estados Unidos da América são uma sociedade «civilizada», no sentido tradicional do termo, que deveria por isso excluir práticas e valores como os exibidos por Donald Trump e os seus numerosos apoiantes. Surge então a dúvida natural: «Como pode tanta gente defender um homem assim? Como pode ela ser tão cega após quatro anos de governação desta personagem egocêntrica, mentirosa, agressiva e tão primária?» O mesmo problema coloca-se na abordagem da situação vivida em Estados europeus, questionando o apoio hoje dado a posições políticas conflitivas e irracionais que questionam os princípios mais básicos do convívio democrático e da solidariedade humana. Olhemos, porém, o caso americano.

Constituirá lugar-comum falar da diversidade e da complexidade extremas da sociedade norte-americana, capaz de integrar universos muito diferentes e fechados sobre si próprios, bem como da prevalência cultural dos valores do individualismo, do peso da ética da livre concorrência ou do culto do dinheiro e do poder que lhe está associado. O «loser», o perdedor, que tanto gosta Trump de depreciar e de invetivar perante as suas audiências, é aquele que foi excluído do sistema que ele defende, ou aquele se autoexcluiu de uma América idealizada, na qual o sucesso material é o eixo de toda a existência e o principal fator de dignidade e prestígio. De modo algum é este o retrato essencial do que, enquanto todo, podemos chamar «a América» – como a história tem repetidamente mostrado, também um lugar de liberdade, de felicidade, integrando a produção do novo e o combate social –, mas ele define, sem dúvida, uma representação bastante disseminada da forma como grande número de norte-americanos se vê a si próprio e encara o universo que habita.

Isto conta muitíssimo quando chega a hora de fazer escolhas políticas. E se a esta base cultural somarmos a pesada influência das estratégias locais do populismo internacional, a omnipresença no quotidiano das numerosas e bem financiadas seitas religiosas, a intervenção dos grupos supremacistas e de extrema-direita, o papel de uma educação sobre a realidade do mundo e os valores da humanidade que para muitos cidadãos foi paupérrima, bem como o peso extremo das redes sociais, aqui desde há muito disseminadas e manipuladas em larga escala, e ainda a intervenção de uma comunicação social em boa parte manipulada por grupos e por interesses, está criado o caldo de cultura para a expansão, à escala colossal do país, de um universo capaz de depor o seu voto no energúmeno. Nada temos então de ficar admirados e de acreditar por momentos que poderia ter ocorrido um milagre. Há apenas que apoiar o lado certo e, no que pudermos, ajudar a que este prevaleça.

Rui Bebiano

Fotografia de Aron P. Bernstein
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