As grandes causas e as causas parciais

A dimensão interventiva do intelectual – olhado como o homem ou a mulher que pensa e fala individualmente, de forma pública e notável, sobre assuntos que a todos importam – afirmou-se historicamente a partir do episódio que envolveu Alfred Dreyfus, o capitão do exército francês, de origem judaica, acusado de alta traição e espionagem no final do século XIX e logo preso, despromovido e condenado a prisão perpétua e isolamento na aterradora colónia penal da Caiena. Quando foi descoberto que se tratara de um erro judicial, abafado pelas chefias militares e pelo governo para evitar o escândalo, e a sua defesa foi publicamente assumida pelo escritor Émile Zola a partir da publicação no diário Aurore, a 13 de Janeiro de 1898, do artigo-libelo «J’Accuse», o episódio transformou-se no conhecido «caso», que mobilizou a opinião pública e teve grande impacto internacional. Serviu agora de mote a O Oficial e o Espião, o filme de Roman Polanski.

O «Caso Dreyfus» dividiu a França, com uma forte demarcação entre a direita autoritária, antissemita e apoiante da restauração da monarquia, e uma esquerda de matriz democrática, republicana e laica. Muitos advogados, professores, escritores, jornalistas e artistas alinharam nesta polémica do lado de Zola e de Dreyfus, proclamando três grandes direitos na sua iniciativa coletiva pela reposição da justiça: o direito à livre indignação pública, o direito a associarem-se para alargar a força do protesto, e o direito ao exercício de um poder simbólico suscitado pela posição, como integrantes do movimento, de muitos cidadãos de renome. Não visavam apenas a anulação de um erro, mas também a promoção de um ideal comum de «verdade» e de «justiça» que transcendia as pessoas diretamente envolvidas. Como escreveu então o autor de Germinal, aquilo que os moveu, mais que o caso judicial em si, foi «a paixão da luz, em nome da humanidade».

O modelo «zoliano» do intelectual publicamente comprometido com as causas que considera justas nasceu aqui, e irá prolongar a sua influência por muito tempo, apoiado no exercício daqueles três direitos. Foi ele que em larga medida marcou gerações de homens e de mulheres, unidos pela militância comum, que passaram a mobilizar a sua voz e a sua escrita por causas que entenderam necessárias. Michel Winock qualificou o século passado precisamente como «o dos intelectuais», o de Gide, Sartre, Beauvoir ou Foucault, empenhados em dar força e em mobilizar massa crítica para os combates em favor da liberdade, da igualdade, da paz, do conhecimento, sempre contra a opressão, a exploração, a segregação e a ignorância. É verdade que o papel deste género de pessoas vive hoje um recuo, determinado pela revolução dos média e pelo peso opressivo dos grupos de pressão económicos e políticos, que lhes retiraram protagonismo ao reduzirem o impacto das grandes causas e o prestígio da inteligência e da palavra; todavia, a sua presença e o seu legado como vozes críticas e promotoras de causas, mantêm um lugar indispensável na construção do mundo contemporâneo.

Vale a pena recordar o seu papel dinâmico e militante ao longo de décadas a combinar e a estimular os mais diversos combates neste tempo em que o individualismo e a política do imediato fazem com que algumas das pessoas que hoje lhes poderiam suceder se dediquem por vezes a espartilhar os combates, virando-os tantas vezes uns contra os outros. Vivemos uma atmosfera política onde a defesa dos trabalhadores e da qualidade de vida, a luta pelos direitos sociais e das minorias, o combate feminista, as batalhas contra o racismo e pela proteção do ambiente, a salvaguarda da liberdade e da democracia, são com frequência hierarquizados e fechados sobre si, em vez de concertados. Em vez também da reunião de todas as causas, sem negar a importância e autonomia de cada uma delas, numa maior, que ao mesmo tempo as transcende, integra e reforça. Foi isto que os intelectuais herdeiros de Zola fizeram, assegurando a mobilização e o sucesso de muitas das causas que fizeram suas, e pelas quais deram a cara e a palavra. É isto que, adaptado a um outro tempo, pode e deve permanecer.

Rui Bebiano

Imagem de J’Accuse. O Oficial e o Espião, de Roman Polanski (2019)
Publicado originalmente no Diário As Beiras de 7/3/2020
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