O Maio de 68 (ainda) e a invenção do passado

1. É natural que uma efeméride como a que acaba de envolver os cinquenta anos decorridos sobre o movimento de Maio de 1968 em França suscite leituras contraditórias. Se elas já o eram na época, se assim se foram mantendo ao longo de décadas, não existe razão alguma para que não continue a ser assim. Como sempre, essas leituras são frequentes vezes influenciadas, a meu ver negativamente, por dimensões de sectarismo, de wishful thinking, de nostalgia e de escasso conhecimento, não só do que realmente aconteceu – e não interessa aqui se alguns dos comentadores «estiveram lá» ou não -, como dos debates sobre a interpretação do episódio que nestes cinquenta anos têm acontecido.

2. Já escrevi que acompanho o Maio de 68 desde a época, tendo correspondido, ainda que à distância, e a par da Primavera de Praga e do seu fim abrupto, ao meu despertar de teenager para a política. Mas também o fui estudando, e até fui escrevendo sobre o tema na condição de historiador, pelo que posso dizer que, não estando isento de erros e de uma perspetiva parcial – todas o são, em política, como em história – tenho uma interpretação própria que, não sendo de modo algum exclusiva ou particularmente sagaz, contraria uma grande parte das leituras negativas, triunfalistas, nostálgicas ou «cheias de presente» , que sobre o tema me têm chegado por estes dias.

3. Simplifico o que me parece realmente essencial (resumindo também o que escrevi em textos que já aqui publiquei, como aquele que saiu no Público na segunda semana do mês passado):

1) foi um tempo de protesto contra o capitalismo em fase de expansão e contra a emergente sociedade de consumo, e de enunciação de uma alternativa política à esquerda tradicional, particularmente aquela apoiada nas experiências lúgubres do «socialismo real»;
2) marcou simbolicamente a emergência na Europa (começara antes nos EUA) dos «novos movimentos sociais», impondo uma agenda reivindicativa com um quadro social, político e orgânico que integrou novos atores;
3) englobou vertentes diversas do ponto de vista social, incluindo ao nível do movimento operário, mas foi essencialmente urbano e associado a setores da juventude, da classe média e dos intelectuais influenciados por uma perspetiva crescentemente libertária da vida e do seu tempo;
4) foi em larga medida espontâneo, sem objetivos claros e talvez tenha sido por isso que saiu visivelmente derrotado no plano político (a maior manifestação do Maio de 68 em Paris foi, no final do mês, precisamente a da direita e dos gaullistas, que logo de seguida esmagariam a esquerda nas presidenciais, elegendo Pompidou);
5) na verdade, o que fez (e faz) a sua diferença foi traduzir um momento simbólico de alerta e de combate de natureza contracultural e antidisciplinar, sendo justamente por isso que é recordado, que ainda falamos dele, e que teve a influência transgeracional que teve. Também existiram greves em Abril de 1967 ou em Julho de 1968, mas estas integram-se num outro padrão de combate social e político.

4. A história pode sempre ser interpretada de diversas formas, levando a conclusões diferentes. Não existe uma única e absoluta noção de verdade na leitura do passado, ou dos passados. Mas exclui de todo a pura invenção de leituras e de cenários impostos a partir do presente.

Publicado originalmente no Facebook

    Democracia, História, Memória, Opinião.