A morte assistida e o dilema do PCP

1. Se tivesse nascido três ou quatro anos mais cedo, provavelmente teria sido «companheiro de jornada» ou mesmo militante do PCP. Esse era o destino mais plausível para um jovem que tomasse consciência da realidade de um país socialmente desigual, amordaçado, fechado e envolvido numa guerra injusta, e possuísse vontade sincera e a coragem suficiente para correr riscos ao ajudar a transformá-lo. O Partido Comunista representou, até ao final da década de 1960, praticamente a única possibilidade de conceber um país-outro, de pertencer a um coletivo que se opusesse de facto ao regime, e era, para quem conhecesse a sua luta, um exemplo admirável de tenacidade e heroísmo.

Mas não foi assim: despertei para a política aos 15, a idade que tinha na primavera de 1968. Por esses dias, em lugares como Paris e Praga, surgiam hipóteses, que, embora por vezes ingénuas, emergiam, sobretudo junto de muitos ativistas mais jovens, como alternativas aos males do capitalismo, mas também ao modelo autoritário e esgotado do «socialismo real» e aos partidos que nele viam um bom exemplo. O «Maio de 68» e a «Primavera de Praga», brutalmente esmagada em Agosto com a entrada dos tanques soviéticos, representou para muitos dos da minha geração um corte com uma possibilidade que deixava de os mobilizar. Foi contra os efeitos desta clivagem que em 1970 Álvaro Cunhal escreveu O radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista, o seu texto menos sustentado e mais injusto. Muitos continuaram a respeitar o PCP, a sua história, a sua luta, não se tornaram «anticomunistas», mas passaram a estar mais atentos à forma como as suas escolhas e leituras foram tendo dificuldade em lidar com alguns aspetos da rápida mudança do mundo e das formas de nele viver, por aquela época sentida também em Portugal.

2. Avanço cinquenta anos. Por causa da votação da despenalização da morte assistida sob consentimento pessoal, desde os anos 90, no contexto da crise então suscitada pela queda do Muro de Berlim e pela derrocada da União Soviética, que não via um tão grande número de pessoas, militantes ou votantes do PCP, muitas delas com mágoa e estranheza, a distanciar-se de forma mais ou menos pública da posição por este tomada sobre o tema. Poderei ter esta perceção ampliada porque pelos meus interesses e profissão me relaciono mais com intelectuais, escritores, artistas, professores, estudantes, profissionais liberais, pessoas da classe média, e essa é apenas uma parte do partido, de modo algum a sua base social mais ampla e decisiva. Porém, é justamente neste plano que julgo situar-se a essência do problema.

O PCP, só assim sou capaz de entender aquilo que agora aconteceu, uniu-se neste processo concreto aos católicos mais obscurantistas e à nossa direita mais arcaica porque uma matriz cultural estruturalmente conservadora o continua a sobredeterminar. Esta apoia-se na ficção de se constituir como «partido de classe» – expressão e instrumento da grande missão histórica emancipadora da humanidade projetada originalmente por Marx – tendo a sua base de apoio, a sua noção de fundamento sociológico e a sua consistência cultural ancorados nos setores mais desfavorecidos, hoje já socialmente em minoria, que infelizmente ainda são, em boa medida e por muitas razões, geralmente os menos informados e, por isso, os que mais resistem a alterações nas convicções e nas práticas quotidianas de ordem subjetiva e moral, como esta concretamente o é.

São estes, e a sua visão do mundo e da sociedade, que em larga medida determinam muitas escolhas do partido: o discurso público repetitivo e convencional, ou apoiado em adágios populares, fortes resistências em questões de moral sexual e de costumes, uma expressão plástica austera e rígida da imagem pública, um exacerbado nacionalismo, o vínculo à ideia de supremacia do coletivo que deprecia a dimensão individual e privada do pensamento e da liberdade, a facilidade com que, em consonância, apoia ou aceita por vezes regimes autoritários e belicistas. A dinâmica política tem forçosamente de acompanhar a dinâmica social, e esta a mudança cultural e das sensibilidades experimentada pelos cidadãos, e isso o PCP teve e tem, muitas vezes, dificuldade em fazer de forma abrangente, descomplexada e ágil, por maioritariamente ter para elas uma grelha de leitura estática, ou por temer abrir brechas na sua antiga matriz. Será também por isso que estagnou eleitoralmente entre a classe média e, com este episódio, deixou muitos dos seus na dúvida. Dói particularmente saber que, por causa desta escolha, existem pessoas concretas, já sem esperança de vida e em atroz sofrimento, que pagarão a fatura.

Crónica publicada no Diário As Beiras de 2/6/2018.

    Atualidade, Democracia, História, Opinião.