Entre o passado e o futuro

Uma destas noites sonhei que voltara ao passado, mas que o fizera de um modo calculista. Fora lá roubar, para usar nestes dias sombrios de inverno, aquilo que ele tinha de melhor. Não a juventude necessariamente insensata ou a energia desmedida, que recordo sem grande nostalgia e para as quais, à medida que as fui perdendo, fui achando alternativas. Também não fui lá buscar as memórias, mesmo as melhores, pois sei que elas têm sempre a forma de fábulas que embelezamos. Afinal, nesse passado fui tão feliz e tão infeliz quanto o sou hoje, ainda que em escalas e por motivos diversos. Naquele «sonho adormecido» – usando o termo cunhado pelo filósofo Ernst Bloch – fui recuperar outra coisa, que permanece perpétua, transcendendo o curto tempo de vida que sempre nos cabe. Falo da absoluta crença na possibilidade de construir um mundo melhor, e também da vontade de transformar a realidade, sabendo que nelas se misturam, em partes desiguais, a imaginação da utopia e a imersão nessa dose de realidade que sempre a confronta.

Em «La Chinoise» (em Portugal, «O Maoista»), o filme que Jean-Luc Godard rodou em 1967, numa parede branca do pequeno e burguês apartamento do centro de Paris que serve de quartel-general ao grupo de jovens irredutíveis, aprendizes de alquimista de uma Revolução que há-de vir, encontra-se escrito, com letras delicadamente decalcadas, «é preciso confrontar as ideias vagas com as imagens claras». Uma frase da autoria de Mao Tsé-Tung que há muitos anos usei também como mote. Nela se resume o princípio que daquele meu sonho procurei trazer de volta para este lado do tempo. O de que não existe intervenção política útil e satisfatória sem que a acompanhe, ainda que à distância, o esboço de impossíveis quimeras. O excesso de realismo e a ditadura da «política do possível», a mera gestão quotidiana do real, imune à ideia de criação e de viragem, é sempre um fator de bloqueio, de desânimo e de cinismo.

Não sou hoje, como é natural, aquilo que fui no passado. E não penso a mudança do mundo com a mesma dose de dedicação e certeza que mobilizou há décadas tantos jovens mais ou menos radicais da minha geração. Mas ao contrário do que acontece com muitos daqueles com quem partilhei esse tempo, e que preferem omitir, calar ou maquilhar aquilo que viveram e em que acreditaram, nada tenho a esconder ou a negar. De nada me arrependo, sabendo hoje, por muito que considere inaceitável a sociedade sem liberdade e sem direito à diferença na qual um dia acreditei, e que agora rejeito de forma absoluta, que essa experiência, partilhada com tantas pessoas, correspondia à expressão de uma procura e à vontade de um encontro. Com a noção de que para melhorar a vida, a nossa, individual, e aquela partilhada com os outros, é preciso começar por projetá-la como um caminho para um futuro mais perfeito e feliz, mesmo sabendo que é impossível construí-lo de forma completa, como se a realidade fossem meras peças de um Lego. No meu sonho, foi essa dimensão de inquietude, de esperança e de partilha solidária que procurei roubar. Não é necessário ler o conhecido livro publicado em 1899 pelo Dr. Freud para o compreender.

Imagem: De «La Chinoise» (J.-L. Godard)
Publicado no Diário As Beiras de 13/1/2018. Versão ligeiramente revista.

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