Alepo e a culpa

Fotografia: Reuters/Rami Zayat
Fotografia: Reuters/Rami Zayat

A propósito da guerra, escreveu Karl Kraus (1874-1936) no jornal A Tocha: «De início um dos lados espera vencer; depois o outro espera que o inimigo perca; de seguida cada um queixa-se daquilo que está a sofrer; no final, ambos percebem que todos perderam.» A guerra é sempre iníqua e dolorosa, mesmo quando se afigura justa para um dos lados, ou até quando parece explicável, necessária e de alguma forma regeneradora. A luta dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial, as guerras de emancipação do domínio colonial ou aquelas que visaram o derrube de ditaduras, seguem esta linha justa, mas nem por isso foram ou serão belas.

Dois exemplos. Os bombardeamentos sistemáticos e arrasadores sobre as cidades alemãs na agonia do poder nazi, descritos por W. G Sebald na História Natural da Destruição, parecem a alguns aceitáveis, dividindo-se estes entre os que defendem que «eles (os alemães) mereciam esse tratamento» e os que consideram que «não havia outra hipótese». A história, essa parece ter lançado um manto de invisibilidade e silêncio sobre as pilhas de pessoas então queimadas e as paisagens reduzidas a escombros. Do outro lado, olhamos Varsóvia convertida em pó como uma espécie de ground zero sobre o qual se reconstruiu o futuro esquecendo os mortos que com esse pó se haviam fundido. Parecem páginas tristes mas de algum modo explicáveis.

Esta posição, compreensível, apesar de parcial, muda de qualidade e torna-se mais difícil de entender quando falamos de conflitos próximos, em relação aos quais não existe a noção clara de qual é o lado certo ou o errado. Se a guerra civil na ex-Jugoslávia (1991-2001), ainda permite, sobretudo após o cerco de Sarajevo, perceber que o essencial do conflito traduziu um confronto entre humanidade e barbárie, o mesmo já não é fácil de aceitar em guerras como as travadas no Afeganistão, no Iraque, na Líbia e agora na Síria. Aqui é impossível distinguir o lado «bom» do «mau». Salvo para aqueles que, num acesso de cegueira que impede uma visão criteriosa, entendem que os EUA, como potência agressiva e imperial, são sempre e para sempre a fonte exclusiva de todo o mal.

Na Síria, muito pouco é claro, e sabemos que de todos os lados existem razões compreensíveis e outras que são inaceitáveis. E deparamos com mesclas estranhas, muito pouco fiáveis, como aquelas que colocam movimentos de natureza islamita ou laica, ambos de natureza dita moderada, com algum apoio ocidental, bem como combatentes curdos, a combater supostamente do mesmo lado de fações extremistas associadas ao Exército Islâmico, em oposição às tropas regulares do ditador Bashar al-Assad, apoiadas sem disfarce pela aviação e o armamento da Rússia de Putin. Isto é tudo verdade, e não esclarece ou tranquiliza seja quem for. Mas por isso mesmo, por não existir um lado no qual possamos confiar, em termos da imposição de uma paz justa e do reconhecimento da diversidade política, cultural e religiosa que esta possa incluir, é necessário ter como objetivo primordial a afirmação de uma paz negociada, não a vitória de um dos lados.

Por isto também é inaceitável que o extermínio indiscriminado lançado sobre a população civil, como aquele que está a ocorrer neste momento em Alepo, possa ser silenciado ou justificado. Se ainda hoje podemos e devemos ter na consciência a amnésia coletiva e o horror «justificado» a propósito dos bombardeamentos aliados, lançados nos últimos dias do Terceiro Reich sobre Colónia, Hamburgo ou Dresden, por longo tempo apagados dos manuais de história, é inaceitável que agora fechemos os olhos, sem ter sequer a desculpa de existir um lado «justo», sobre a redução a escombros da maior cidade da Síria. A paz que daqui resultar será sempre podre e deixará um lastro de dor e de culpa.

Versão ligeiramente ampliada do artigo de opinião publicado no Diário As Beiras

    Atualidade, Cidades, Democracia, Direitos Humanos.