Euro-2016: anatomia de uma paixão

Fotografia de Kristina Truluck
Fotografia de Kristina Truluck

De cada vez que acontece um grande torneio ou se celebra uma vitória memorável, emergem nas redes sociais – goste-se ou não, com os seus defeitos e capacidades, o lugar onde circula hoje a opinião mais autónoma e plural –, muitas vozes que rejeitam o futebol como desporto de massas e celebração de um prazer ou de uma paixão. Pode ser apenas a demonstração verbal de um legítimo desinteresse por algo de que se não gosta, ou então a rejeição dos gastos e dos negócios obscenos que envolve, ou ainda o natural protesto pelo destaque exagerado e obsessivo que nessas alturas o jogo ocupa nos meios de comunicação.

Outras vezes, porém, é mais que isso, surgindo em certos casos como expressão de repulsa ou mesmo de ódio. Um ódio irracional e agressivo, como todos os ódios, que é diretamente projetado sobre quem o acolhe como praticante ou como adepto. Os argumentos são sempre os mesmos: o futebol será manifestação de despolitização ou de incultura, o reino negro do dinheiro sujo e do desperdício, recreio para rapazes estúpidos ou para fanáticos, pura perda de tempo quando tanto há de «verdadeiramente importante para fazer». Ainda que a vida seja feita também dos vícios e dos nadas que a tornam mais complexa e emotiva.

Em Futebol: Sol e Sombra, Eduardo Galeano fala-nos do desprezo que ao futebol têm votado muitos intelectuais elitistas e conservadores, precisamente porque o associam ao gosto popular: «O instinto animal impõe-se à razão humana, a ignorância arrasa a Cultura, e assim a relé tem o que quer». Lembra também o ataque que lhe tem sido feito por alguns autores politicamente de esquerda, para os quais este «castra as massas e desbarata a sua energia revolucionária», surgindo como uma «maquinação da burguesia», como anestésico da «consciência de classe» e ópio do povo.

São, no entanto, inúmeros os criadores, os pensadores ou os ativistas que o consideram parte substancial da vida, que o tomam como espaço singular de socialização, que o incorporam no seu processo de representação do mundo, que o incluem como valor seguro das suas existências. Gramsci chamou-lhe um dia «reino da lealdade humana exercida ao ar livre», Camus disse que tudo aquilo que aprendera «sobre a moral e a responsabilidade humana» o devia ao futebol, Pasolini, que o adorava,  considerou-o «a maior representação do sagrado do nosso tempo, mas também rito profundo e evasão», Salman Rushdie reconheceu que, mais do que quando publica um livro, sente particular prazer se o Tottenham bate o Manchester United num disputado 3-2, e Julian Barnes, invejo-lhe a sorte, é adepto do Leicester City.

No que me diz respeito, faço jogo duplo. Gosto muito de futebol (do jogo em si, de muitos jogadores, miúdos, graúdos ou veteranos, vivos ou desaparecidos), mas detesto inúmeras práticas do seu mundo tentacular (a «clubite», a maioria das claques, certos dirigentes, os interesses instalados, a vampirização da modalidade pelas televisões). Tenho um clube do coração, que jamais considero «o melhor do mundo», embora gostasse muito que vencesse sempre. E até prefiro que os seus rivais sejam fortes, para que me saibam melhor as vitórias e custem menos as derrotas. Durmo sempre melhor.

De tudo, porém, o que mais me aproxima do futebol é saber que existem muitos milhões de pessoas – homens e mulheres, de diferentes gerações, credos, ideologias, tons de pele e classes sociais – para quem é espaço de encontros, alimento de uma esperança possível, ou pretexto para uma felicidade plena, ainda que limitada e fugaz. Acordam a pensar nele, adormecem a pensar nele, sonham com ele, morrem tantas vezes com ele no coração. Só por isso, e ainda que não gostasse do jogo, respeitá-lo-ia sempre e jamais me entreteria a denegri-lo. Como gosto muito, já estou a cruzar os dedos para que tudo corra bem à seleção e seja desta que nos caiba subir à tribuna do Stade de France para receber a taça.

Versão ligeiramente ampliada do artigo saído no Diário As Beiras

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