Os dias da ira

Observada do exterior, a situação no Brasil parece mais confusa e perigosa a cada minuto que passa. Mas para a generalidade dos brasileiros, seja qual for o campo político no qual se situem, sê-lo-á de um modo ainda mais intenso. Terão a triste vantagem de conviver há muito com a instabilidade política, a desigualdade social e uma corrupção endémica, mas a enorme desvantagem de sofrer na pele as suas imprevisíveis e nefastas consequências. Já para nós, acantonados no observatório razoavelmente protegido deste lado do Atlântico, é sempre menos difícil, pois sofremos as suas ondas de choque somente em diferido. Por isso se entende a forma como, do lado de lá, estes dias estão a ser vividos com as paixões à solta e as cabeças bem quentes.

Não merecem o menor respeito os energúmenos que saíram à rua não apenas para protestar contra o governo legítimo – um direito democrático que muitos brasileiros usaram de forma pacífica – mas expressamente para defender a supremacia dos mais ricos, o golpismo da direita e mesmo a imposição de uma ditadura militar, vendo alguns fantasmas onde ninguém no seu perfeito juízo os consegue ver. Por exemplo, considerar o PT, tão plural e desprovido de ideologia, como instrumento de uma invisível «ditadura vermelha», só pode ser brincadeira, má-fé ou completa idiotice.

Mas também se ouvem aqueles que, do lado contrário, têm procurado diminuir o alcance que os esquemas de corrupção tomaram entre personalidades e setores que apoiam a atual administração. É isso que lhes afeta a lucidez: um objetivo justo, o de conter o golpismo de natureza antidemocrática, associado a uma perspetiva enviesada, assente na desculpabilização de esquemas que serão sempre indesculpáveis. E nem todos estes são obra da miserável manipulação pela direita do dinheiro dos principais meios de comunicação e de uma parte do sistema judicial, claramente apostados em derrubar o governo eleito.

Essa perspetiva dificulta a capacidade para reconhecerem que a fuga para a frente, lançada por Lula em concertação com uma Dilma Rouseff cada vez mais impopular e subalternizada, e traduzida na aceitação de um cargo ministerial de topo, apenas se voltará, por muito legítima que possa ser, contra ele e contra aquilo que ainda possa oferecer o projeto do PT. Dentro do atual mapa político, ultrafragmentado e pouco mobilizador, e apesar dos erros cometidos, aparentemente a única força ainda capaz de impedir o regresso do velho Brasil do autoritarismo e das desigualdades.

A energia e a autoridade moral que fizeram de Lula e do seu partido uma esperança para tantos milhões de brasileiros, dos mais pobres a uma renovada classe média, que com eles puderam de facto alcançar uma vida mais digna, não podem ser confundidas com as atitudes condenáveis de alguns. Mas também não podem ser malbaratadas desta forma voluntarista e desastrosa. Tentando ganhar na secretaria aquilo que deverá ser obtido no foro judicial, na rua e nas urnas, lado a lado com o povo brasileiro. Têm sido bem duros estes dias, vividos na ira e em ódios extremados. Oxalá passem depressa e acabem em paz com a vitória da democracia e de uma justiça justa, mas não vai ser fácil.

Publicado no Diário As Beiras

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