A voz dos outros

Não tenho muito mais a dizer sobre esta novela ruidosa, acompanhada de exacerbadas petições favoráveis ou desvaforáveis, projetada a propósito do anunciado regresso de José Sócrates, na qualidade de comentador político, a um espaço semanal na RTP. Cinco curtos parágrafos apenas:

1. Não conheço Sócrates em carne e osso e admito que possa até ser excelente pessoa. Mas desde que ganhou notoriedade política vi-o sempre como alguém com uma pose pouco dialogante e um discurso ideologicamente insípido, numa atitude que culminou, após a ascensão à chefia do Partido Socialista, com o isolamento da sua ala esquerda, por ele repetidamente apelidada de «velha», «caduca», em favor dos setores essencialmente técnicos e mergulhados na gestão «pura», próximos da já então moribunda Terceira Via.

2. Os seus governos, inspirados no programa capitulacionista do Labour inglês, não poderiam, assim, deixar de dar naquilo que deram. Não sendo carne nem peixe, pactuando por vezes com situações administrativas ou percursos pessoais de pouca transparência, deram lenha para queimar a alternativa social-democrata – no sentido historicamente identitário desta tendência – em favor do neoliberalismo mais primário, selvagem, que o atual governo PSD-CDS assumiu na perfeição.

3. Ainda assim, parece-me óbvio, e só o não vê quem o não quiser ver, que os seus governos distanciaram-se, em termos de perversidade, de insensibilidade e de uma opção sem barreiras e sem vergonha pela destruição completa do Estado Social, do atual. Aliás, em 2011 tal era já percetível e foi essa a razão pela qual – não o esqueçamos – setores à esquerda chegaram a questionar fortemente a opção visivelmente suicida por novas eleições, então permitidas no Parlamento, no contexto da rejeição liminar do PEC IV, pelo PCP e pelo BE.

4. Pior do quem isso: depois do afastamento de Sócrates e dos setores do Parido Socialista que lhe eram mais próximos, e após a chegada ao poder do bando de bárbaros e impreparados que nos governa, a cegueira política e o ódio irracional de alguns setores, não diferenciando o que é afinal diferente – em manifestações contra o atual governo, algumas pessoas, politicamente muito identificadas, chegaram ao ponto de exibir cartazes exclusivamente anti-Sócrates –, têm dificultado a tarefa prioritária e urgente de erguer uma alternativa democrática comum.

5. Nestas condições de distanciamento, estou à vontade para considerar antidemocrática, e uma manobra de diversão objetivamente favorável ao atual governo, a tentativa de silenciar alguém de quem, tal como acontece com Sócrates, se é adversário político. A democracia acaba quando aceitamos ouvir apenas a voz de quem gostamos ou com quem nos identificamos. Não conto perder um minuto que seja a ouvir os comentários televisivos de José Sócrates, para mim politicamente morto, mas nem por isso deixarei de defender o seu direito a emiti-los onde bem entenda.

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