A norte do paralelo 38

Apesar do condicionamento endémico de stocks com o qual convivem hoje as nossas livrarias, não deve ser difícil encomendar alguma leitura sobre a República Democrática Popular da Coreia, a remota Coreia do Norte. Encontro três traduções mais ou menos recentes: Os Aquários de Pyongyang, de Kang Chol-Hwan (Hespéria), «Aqui é o Paraíso!», de Hyok Kang e Philippe Grangereau (Ulisseia), e A Longa Noite de um Povo, de Barbra Demick (Temas & Debates). Todas incorporam depoimentos de norte-coreanos que nos dão a ver o caráter absoluto, extremo, implacável, da experiência totalitária e da ditadura paranoide, supostamente comunista, que condicionam e subjugam o seu povo e o seu país.

Existe sempre um público para a exposição do horror e do sofrimento dos outros, mas tal não é necessariamente um sinal de perversão. Afinal, quem leia obras desta natureza não pode evitar uma relação de repulsa diante de tanto sofrimento e de tanto negrume. Mas a atração por esse tipo de testemunhos vem também do isolamento extremo do país e da dificuldade que todos sentimos de cada vez que procuramos obter informação credível, não contaminada pela fantasmagoria norte-coreana ou pela contra-propaganda. De facto, estas leituras ajudam-nos bastante a reduzir a distância, recolhendo experiências que, em regra, os noticiários, mais curtos e forçosamente truncados, acabam sempre por manter na sombra.

Faltava-nos uma narrativa detalhada, escrita na primeira pessoa. Esta surge agora com Dentro do Segredo, um relato de viagem pelo território coreano situado acima do paralelo 38 da autoria de José Luís Peixoto (Quetzal). O livro é em si o fruto de um delito, uma vez que numa das diversas declarações e compromissos de honra que o autor foi forçado a assinar antes de iniciar a viagem se prescrevia a impossibilidade de escrever o quer que fosse sobre ela. Retomam-se ou multiplicam-se pormenores e descrições sobre a vida diária dos coreanos, o total controlo político e o absurdo mas omnipresente culto dos líderes, de uma ou de outra forma já conhecidos, mas adiciona-se-lhes um esforço que lhe confere um sentido próprio. Refiro-me à enunciação razoável, produzida na primeira pessoa, de um tempo que parece morto, de um universo baço mesmo quando colorido, de um ambiente onde o tédio se sobrepõe à luz, de um viver repetitivo e coatado, de uma incapacidade generalizada para compreender as noções de diversidade, de hesitação ou de erro que deixam qualquer visitante, isolado do resto do mundo, sem telemóvel, Internet ou uma imprensa minimamente credível, à beira do colapso.

A ter de escolher um sinal eloquente da desta descrição de um mundo às avessas escolheria a do Hotel Ryugyong, um edifício de trezentos e trinta metros de altura, com cento e cinquenta andares e sete restaurantes rotativos no topo, de longe o maior da capital, que por falta de financiamento e de capacidade tecnológica do regime ficou por acabar. Jamais é nomeado, não existe nas fotografias oficiais, as pessoas comuns e os funcionários passam ao seu lado como se o seu vulto imenso não estivesse ali. É verdade que parece estar, mas não existe porque não é um triunfo «da liderança». Apesar de literariamente frágil, este livro de José Luís Peixoto constitui um roteiro para uma viagem sombria ao purgatório na Terra, no qual a principal pena infligida aos que o povoam é a pobreza e a incapacidade para conhecer e para esperar. E os principais antídotos são a xenofobia, o medo e o conformismo.

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