Isaac Babel e as canções desafinadas

A reminiscência de Isaac Emmanuilovich Babel chegou-me através de um triplo reflexo. Primeiro aquele que deixava vislumbrar o escritor e jornalista combatente, antigo opositor ao czarismo e membro da primeira geração da intelligentsia bolchevique, que durante a guerra civil russa esteve com o Exército Vermelho como oficial, funcionário do comissariado da educação, tradutor e repórter. Depois, o que revelava ter ele sido um dos muitos intelectuais soviéticos, assumidos comunistas, brutalmente perseguidos durante as purgas lançadas por Estaline nos anos trinta. Finalmente, o que iluminava um vestígio do que poderia ter sido a aplicação do ideal revolucionário no campo da literatura e das artes se este não tivesse sido pervertido e transformado num mero instrumento de propaganda, numa correia de transmissão do modelo violento, centralista e despótico que foi tomando gradualmente conta do poder soviético.

Filho de uma família de judeus ortodoxos, Babel nasceu em 1894 em Odessa, a atual cidade da Ucrânia que fizera parte do Império russo desde que fora erguida praticamente do nada no tempo de Catarina, a Grande, para se afirmar como um notável centro cosmopolita e multiétnico aberto, como ponte fronteiriça, a oriente e a ocidente. Em alguns contos com a cidade como centro reunidos em livro em 1931 mas escritos durante os anos vinte, o escritor testemunhou o princípio do fim desse mundo caleidoscópico e essencialmente tolerante um dia habitado por Puchkine e descrito com admiração por um Mark Twain de passagem. Num desses contos, o personagem Benya Krik, o rei brigão do gangue judaico que chegara a controlar parte da cidade, surge representado como os contornos fisionómicos e psicológicos do autor: alguém com «os óculos redondos no nariz e o outono na alma». Charles King, autor de uma recente biografia de Odessa, lembra Babel como «um homem de fronteira que passou a maior parte da sua curta vida movimentando-se entre mundos: o judaico e o russo, o czarista e o bolchevique, o militar e o artístico.»

Com o também ucraniano Vasily Grossman, Isaac viria a ser um dos primeiros responsáveis pela transformação do jornalismo de guerra numa forma de arte voltada para um tipo particular de público leitor. Em 1919-21 cobriu o conflito russo-polaco, percorrendo os terrenos de batalha integrado num destacamento da cavalaria cossaca. Escreveu então o seu Diário de 1920, centrado nos horrores que presenciou e polvilhado com advertências, destinadas a si próprio, para que se não esquecesse do que vira e não deixasse que essa memória se mantivesse apenas sua. Cavalaria Vermelha, publicado em 1926 e o seu livro mais conhecido, será uma coletânea de contos que resultou desta experiência e permanece ainda como um dos melhores exemplos de ficção que tem a experiência direta da guerra como núcleo central da narrativa ficcional.

O antissemitismo é outro dos temas nucleares presentes na evocação dos conflitos que Babel presenciou. Em diversas crónicas mostrou de que forma, apesar de se combaterem um ao outro, tanto o Exército Vermelho quanto o Branco foram sempre cometendo horríveis atrocidades contra as comunidades judias com as quais nos seus movimentos deparavam. No conto «Gedali», pergunta sem saber de que lado estavam o bem e o mal um pequeno comerciante judeu: «mas afinal qual é a Revolução e qual é a contrarrevolução?» A dupla condição do autor, de judeu que era ao mesmo tempo um convicto combatente da Revolução, acompanhou-o até ao fim da vida e foi, evidentemente, utilizada contra si quando chegaram as horas difíceis da prisão, do exílio e da morte impostas pela intervenção dos agentes da NKVD. Os supostos crimes que lhe foram imputados contiveram, obviamente, a agravante de terem sido levados a cabo por alguém da sua origem.

Todavia, mais do que através da obra publicada, a sua dimensão heróica afirmou-se de forma particularmente intensa no que não saiu das tipografias mas foi deixando em confidências, em intervenções cada vez mais espaçadas, em cartas pessoais e apontamentos privados que acabariam por condená-lo. Cavalaria Vermelha tornara Babel um escritor celebrado dentro e fora da União Soviética, mas trouxera-lhe também poderosos inimigos – Gorki, antigo mentor e amigo, tinha entretanto aderido miseravelmente ao embuste estalinista e por isso não estava já em condições de o ajudar – o que fez com que pouco tivesse podido publicar a partir daí. Ainda assim, sempre se recusou a abandonar o Estado que ajudara a fundar, consumando uma espécie de ato de autossacrifício que muito cedo assumiu. Em 1934, num momento de ironia suicida, considerou-se a si próprio «um mestre no género do silêncio». O Grande Terror determinaria o definitivo silenciamento daquele que um dia anotara num relato de viagem: «Sobre a cidade pairava uma lua sem-abrigo. Deixei-me seguir com ela, enquanto alimentava no meu coração sonhos impraticáveis e canções desafinadas.» Preso e torturado, morreu de forma desconhecida no Gulag, provavelmente em 1941. Em 1954 foi reabilitado por Kruchtchev. Em 1957 foram publicadas em território soviético umas «obras escolhidas» ainda censuradas. A obra integral saiu pela primeira vez em russo apenas entre 2002 e 2006.

Rui Bebiano

Fotografia: Babel e Antonina Pirozhkova em 1935
    Biografias, História, Memória.