Adeus, Lenine | Os livros que sublinhei, 1

Adeus, Lenine

Há cerca de uma semana passei uma tarde a arrumar livros que tinham ficado para trás, na casa onde nasci, onde me criaram e onde não voltarei a dormir. A casa está agora desabitada. Está muda, vazia. Imagino que à noite se oiça, ainda mais, a chuva sobre o velho telhado, o vento empurrando os ramos da laranjeira contra a janela do meu quarto, o ruído dos motores acelerando estrada fora até se calarem ao longe. Mas só o posso imaginar, pois já lá não estou. Do que ali vivi sobra apenas a memória. Algumas fotografias também. E sobretudo os livros que li no tempo em que lá dormia, quando ali morava a minha segura retaguarda. Foram eles, os livros, os sinais que fui deixando ficar, como aviso de que não havia partido para sempre. Agora que tudo acabou, trouxe-os comigo. Os últimos, que não couberam na mala do carro, virão na próxima jornada. São um elo, são muito do que fui, são um pouco do que sou, deixei de ser ou jamais serei. Percebo-o agora quando regresso, com ou sem surpresa, aos sublinhados obstinados, seguros, ingénuos ou dementes.

Lenine, Como iludir o povo com os slogans de igualdade e de liberdade [Centelha, 1974]

Lido em algum momento durante os meses do PREC, provavelmente ainda em 74. Uma obra de referência na reconhecível escrita martelada de Lenine, que o rasto da Revolução de Outubro transformaria em template universal e intemporal. Na época, como mais de cinquenta anos antes na Rússia soviética – fora originalmente um discurso pronunciado em Maio de 1919, nitidamente decalcado de O Estado e a Revolução – este texto simplificava o complexo para dissipar a dúvida das almas bolcheviques menos firmes na recusa da democracia parlamentar.

«Quando só houver no mundo trabalhadores e as pessoas se esquecerem de pensar em como era possível ser um membro da sociedade e não um trabalhador – isto não acontecerá tão cedo, e a culpa é dos cavalheiros burgueses, assim como dos cavalheiros intelectuais burgueses – então seremos pela liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião significa liberdade de reunião dos capitalistas, dos contra-revolucionários. Lutamos contra eles, e havemos de abolir essa liberdade.

Estamos numa batalha – é este o significado da ditadura do proletariado. Passaram os dias do socialismo ingénuo, utópico, fantasista, mecânico e intelectual, quando se pensava que bastava convencer a maioria das pessoas e pintar um belo quadro da sociedade socialista (…).

A Humanidade só pode atingir o Socialismo através da Ditadura do Proletariado. Ditadura é uma palavra crua, séria, sangrenta e terrível, e tais palavras não devem ser atiradas levianamente. Se os Socialistas lançaram um tal slogan é porque sabem que a classe dos exploradores só cederá em resultado duma luta desesperada e sem piedade e tentará disfarçar o seu domínio por meio das mais variadas palavras agradáveis.»

    Memória, Olhares.