Do passado que passou

praxe

Há uns meses fui desafiado pela Plataforma Anti Praxe Académica, de Coimbra, a escrever um texto para editar no seu P.A.P.A.zine. Saiu aquilo que abaixo se transcreve. Sei que não é fruta da época – já passou a Latada e ainda não chegou a Queima, datas-magnas da vida estudantil para grande número de universitários – mas talvez por isso mesmo, porque seja tempo de menos adrenalina movida a superbock, seja também a altura de o divulgar aqui. Didactismo e panfletarismo qb, que há gostos para tudo.

Para a maioria dos estudantes que nas décadas de 1960-1970 frequentaram a Universidade de Coimbra – nas outras o problema nem se punha –, a praxe académica não tinha grande peso. Simplesmente porque estava a desaparecer. Antes do «luto académico», decretado em 1969 para responder à repressão dos estudantes, já a maioria destes pouco se preocupava com esse tipo de prática simbólica. O desenvolvimento do associativismo estudantil e o alastrar de uma concepção tendencialmente democrática e igualitária da sociedade, a recusa de um certo «espírito de rebanho» que as autoridades apreciavam, iam transformando a praxe, como rotina de base corporativa e elitista, em algo de suficientemente anacrónico para ser ignorado por um número crescente de alunos. Até mesmo o uso do traje académico vivia uma fase de claro recuo, embora alguns ainda dele se servissem casualmente. Ao fechamento da batina, imposto pela decisão colectiva do «luto», seguiu-se por isso, em poucos meses, o seu quase completo desaparecimento.

O que aconteceu nessa altura foi assim a confirmação de uma transformação de facto: não se fez desaparecer a praxe do dia-a-dia estudantil, pois aí ela já quase não existia, mas acabou-se com a festa académica tradicional e com a ostentação pública da imagem elitista do aluno universitário. Esta mudança serviu para unir os estudantes contra o governo da altura, aproximando-os do cidadão comum e mostrando que consideravam existirem situações muito mais importantes do que a ocasional exibição do destaque social e da capacidade para consumir álcool. A presença de um número cada vez maior de mulheres na academia acentuaria aliás a metamorfose, limitando o «prestígio» da boémia masculina e da «autoridade da moca» na qual se fundava parte da velha ordem estudantil. Os estudantes não se viram assim «privados da praxe», como li há meses num artigo de jornal: a larga maioria deles descartou-a porque já não a sentia como sua, servindo-se do que dela restava apenas para a sua luta anti-regime e anti-sistema. Por isso durante mais de dez anos, e com a Revolução de Abril pelo meio, ninguém mais pensou no assunto. Ele simplesmente parecia morto e enterrado.

Foi por isso como qualquer coisa de artificial, e como marca visível de um recuo da ordem estudantil democrática, que durante a década de 1980 ocorreu o gradual ressurgimento da praxe. Não por causa de alguns elementos de carácter lúdico e festivo que ela reintegrou na vida da academia e da cidade, aceitáveis apesar de discutíveis, mas porque os actos de violência real ou simbólica que frequentemente comporta, pelos atentados à liberdade individual que geralmente configura, pelos conteúdos aviltantes, sexistas e mesmo boçais que quase sempre integra, se ergueram contra uma outra tradição, de contestação, de igualdade e de abertura à sociedade e ao mundo, que vinha sendo construída. A recuperação da praxe não pode por isso deixar de ser associada ao claro recuo das utopias igualitárias que na fase anterior haviam dominado os imaginários e os comportamentos das comunidades estudantis, bem como a relação destas com a sociedade envolvente. Por isto também, nas actuais condições, que reajustaram completamente o lugar social de um estudante universitário «proletarizado», já tantas vezes associado agora a identidades que não exclusivamente a académica, a conservação da praxe no seu recorte supostamente imutável e elitista revela-se particularmente anacrónica.

Mas ser anti-praxe não pode corresponder a uma atitude de automarginalização em relação à actual comunidade estudantil. Não pode significar isolamento e menos ainda segregação. Pelo contrário, é mergulhar nos dias de hoje, é reconhecer uma realidade em rápida transformação, não pactuando cegamente com a construção de uma identidade algo esquizofrénica e paranóica. Uma identidade virtual que toma a vida à nossa volta não por aquilo que ela é, não pela forma como ela vai mudando e toca de facto quem nela se movimenta, mas por aquilo que se fantasia serem os reflexos do que um dia foi. O passado da academia não é para apagar, para deitar fora. Seria aliás bastante estúpido e até inútil tentar fazê-lo. Mas não pode servir para legitimar o imobilismo, a opressão e a ausência de uma dimensão realmente solidária, crítica e participativa da vida estudantil. Na universidade e fora dela.

    Apontamentos, Coimbra, Memória, Olhares.