Nove meses em Luanda – 2

Holden, eu e os Led Zeppelin (inicialmente publicado em 8 de agosto de 2007)

A morte de Holden Roberto não teve em Portugal a repercussão que o seu papel histórico justificava. Aos 83 anos, era agora uma figura frágil e politicamente irrelevante, que não merecia grande atenção. E, no entanto, a figura do «homem dos óculos escuros» – em tempos diabolizado pelas correntes emancipalistas de inspiração marxista – marcou os últimos cinquenta anos da história angolana. Fundador, em 1954, da organização que esteve na origem da União dos Povos de Angola (UPA) – que lançou em Março de 1961 a luta armada pela independência – foi depois o líder incontestado da Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA). Em Janeiro de 1975, após os acordos de Alvor, a FNLA chegaria a vislumbrar a possibilidade de, em conjunto com o MPLA e a UNITA (nessa altura um movimento militarmente enfraquecido), assumir o poder depois da partida dos portugueses. A grande proximidade de Roberto com o presidente zairense Mobutu Sese Seko – que financiava e armava os guerrilheiros da Frente – associada a uma auréola de mistério cultivado que lhe ampliava o carisma, reforçavam então a convicção generalizada de que era uma figura politicamente incontornável. Na década de 1980, porém, a crise interna da Frente retirar-lhe-ia protagonismo, vindo a reaparecer no cenário político «normalizado» emergente do final da última guerra civil. Onde se manteve até ao passado dia 2.

Encontrei-o uma vez em Junho de 1975. Magricela e imberbe, sem experiência de guerra, eu comandava (supostamente) em Luanda um pelotão das Forças Militares Mistas, compostas por membros do exército português e guerrilheiros dos três movimentos. Missão: ao abrigo do acertado em Alvor, patrulhar dia e noite as ruas da cidade, uma vez que a polícia quase desaparecera. Procurávamos, sem grande jeito mas óptimas intenções, impor um simulacro de ordem num caos que todos os dias crescia. Da minha parte, fiz nessa altura de tudo: controlei o trânsito, prendi ladrões e traficantes, despachei conflitos laborais, apaziguei zaragatas nos musseques, fiz rusgas em casas de meninas, resolvi até intrincados conflitos conjugais. No dia seguinte, claro, tudo voltava ao mesmo ponto, mas o nosso dever era fazer de conta que existia um mínimo de ordem pública. Foi durante este trabalho que os soldados do meu pelotão apanharam em flagrante delito um assaltante armado, portador de um cartão de militante da FNLA. Perante a necessidade prática de fazer qualquer coisa sem saber muito bem o quê – as prisões não funcionavam e os tribunais ainda menos – levei-o à sede da FNLA que ficava então (creio, mas já passou muito tempo) na Avenida de Lisboa, procurando, obviamente, passar o problema para mãos que presumia mais capazes.

De pistola Walter na mão direita e agarrando com a esquerda os braços algemados do homem, como nos filmes, fui conduzido a uma sala na qual se encontrava, diziam-me, quem poderia resolver o problema. Entro na sala e fico gelado, em estado de semi-pânico: na minha frente, uma mesa circular com a direcção luandense da Frente e, presidindo, rosto impassível como nos cartazes, óculos escuros espelhados – que não tirara, apesar da sala estar, lembro-me muitíssimo bem, completamente às escuras – Holden Roberto em pessoa. Engolindo em seco e tentando não gaguejar, recusei a oferta de uma Cuca igualzinha aquela que todos tinham à sua frente («em serviço não posso beber, senhor presidente»), e lá expliquei ao que ia. «Então muito obrigado, deixe-o ficar», disse simpaticamente Holden. Olhei o assaltante, que me pareceu completamente apavorado, agradeci, fiz uma rápida continência, saí e fechei a porta. Com o nervoso, saí do edifício a assobiar baixinho uma canção dos Led Zeppelin.

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