Arquivo de Categorias: Opinião

O meu pé esquerdo

Peace Now
1. Porque será que recusar qualquer concessão diante do fanatismo religioso, execrar todas as tiranias e qualquer governo de fundamentação teocrática, combater frontalmente o outro que não aceita a minha alteridade, aceitar o direito de qualquer povo (de qualquer povo) a seguir o seu próprio trajecto histórico (e a defendê-lo, naturalmente), se afiguram, aos olhos de tantas pessoas que se consideram partidárias dos direitos políticos e sociais democráticos mais elementares, como vestígios de simpatia para com os sorrisos deploráveis de George W. Bush e da menina Condoleezza ou as posições inequivocamente belicistas dos «falcões» sionistas? Claro que esta é apenas uma pergunta retórica.

2. A uns como a outros, a «eles» como a «nós», apesar da guerra, da «luta de classes» ou daquilo que parece ser um confronto de civilizações – de identidades, se quisermos – espera-os, espera-nos, uma única missão. Pietro Citati identifica-a: «escavar o terreno do Éden que há em cada um de nós e demonstrar que existe apenas uma raiz, que todos os ramos brotam de um mesmo tronco, que todos os pensamentos, as sensações, as discórdias e as crenças não passam de uma única vaga de luz».

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    Planeta Hezbollah

    O documentário sobre o Hezbollah que a SIC-Notícias exibiu ontem – realizado há três anos por jornalistas identificados, com testemunhos também eles identificados com clareza – terá deixado a qualquer espectador de sentimentos genuinamente democráticos uma terrível impressão. Nele se mostraram os contornos de uma organização islamita, fortemente financiada a partir do exterior, que assume um paternalismo infame sobre a causa palestiniana, procurando «ensinar» os seus combatentes a porem de lado as inibições e a fazerem uma verdadeira «revolução islâmica». Nele foi possível ver uma força muito bem armada, equipada como um exército regular, com bases escondidas e instalações não identificadas espalhadas por ruas e ruelas de cidades libanesas, a artilharia pesada apontada sempre para o lado de lá da fronteira. Nele se deparou com um poder autónomo que não dá importância alguma às autoridades locais e manipula sem vergonha – incluindo nessa manipulação pagamentos em dinheiro e oferta de cuidados de saúde que os libaneses não podem custear – a extrema miséria da população muçulmana xiita, desprezando ao mesmo tempo os restantes 55% da população do país. Nele foi possível verificar a imposição nas zonas controladas de normas estritas de «comportamento islâmico», principalmente aplicadas às mulheres, e que no Líbano vinham sendo objecto de uma grande tolerância. Nele se ouviu, repetidamente, um discurso primário apelando à jihad e lançado contra tudo aquilo que se não pareça com uma visão teocrática e anti-ocidental do mundo. Nele se exibiu um ódio extremo a toda a tradição histórica de convívio étnico e religioso da qual o Líbano se manteve na região como um farol. E, acima de tudo, nele se colocou, diante dos olhos de quem o quis ver, um imenso menosprezo pela democracia representativa e pela liberdade de expressão, por eles diabolizadas como criaturas dos EUA e de Israel. Como dizia no documentário um dos seus principais responsáveis: «nós vamos provar, através do apoio democrático do povo, que a república islâmica é o único caminho». «E se o povo não aceitar democraticamente esse caminho?», questionou o entrevistador. «Então prosseguiremos o nosso combate por todos os meios», respondeu.

    É a esta gente que, órfã das revoluções de que precisa para não diluir os seus mitos mais profundos, parte significativa da nossa «opinião progressista» – para utilizar uma expressão tão arcaica quanto eufemística – reconhece agora toda a legitimidade na luta «de massas» contra o estado de Israel. E na guerra – extrema e atroz, com o seu longo cortejo de inocentes vítimas, como todas as guerras – que acontece à nossa frente. Em que planeta estamos nós?

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      Longe de Deus e perto do céu

      Voltaire
      «Le merveilleux de cette entreprise infernale, c’est que chaque chef des meurtriers fait bénir ses drapeaux et invoque Dieu solennellement avant d’aller exterminer son prochain.» (Voltaire, do artigo Guerre no Dictionnaire Philosophique)

      Se, para além do antiquíssimo cortejo de dor, destruição e morte, existe na guerra algum factor de inevitabilidade, ele deve encontrar-se na quase impossível posição de neutralidade de quem com ela se veja forçado a conviver. As tentativas para alcançar esse estado de inocência são tão impossíveis de manter quanto difíceis de justificar. E nem mesmo os místicos o conseguiram demasiadas vezes, como o comprovam as legiões multiétnicas de mártires da paz. O máximo que se pode conseguir nestas situações é fazer de contas que se não pertence a este mundo, pactuando ao mesmo tempo com a ordem das coisas que o domina.

      Debaixo de fogo, entre gritos e explosões, respirando o cheiro inconfundível do combate – conhece-o bem quem já esteve em campo de batalha – é estranha a imparcialidade. Ali mata-se ou morre-se, foge-se em pânico ou fica-se paralisado pelo medo, luta-se por uma das partes, ajudam-se os seus feridos ou acalmam-se os que perdem o controlo, mas jamais poderá agir-se como se nada daquilo estivesse a acontecer. E, ainda que a confortável distância, ainda que em posição de presumível segurança, é difícil manter a equidade. Basta recordar a forma como os pacifistas foram tratados durante a Primeira Guerra Mundial, acusados de ausência de patriotismo e de pacto com o inimigo, ou como na mesma altura foram vistos certos membros das vanguardas artísticas, culpados de pusilanimidade. De resto, perante o desfile trágico dos refugiados, a visão dos corpos feitos em papa, as crianças em choque, os adultos transformados em bestas ou em cobardes, como ficar indiferente?

      Pode, no entanto, pôr-se a questão em termos diferentes: será possível, em cenário de guerra, recusar a indiferença sem que tal signifique tomar partido por uma das partes? A guerra em curso no Médio Oriente recoloca a urgência desta questão e, de novo também, a necessidade de definir um esforço de resposta. A maioria das tomadas de posição – particularmente visíveis aqui no mundo dos blogues – tende a desenhar o confronto a traços unicolores, sendo raros os comentadores que assumem posições de equidistância. Separa-se portanto, quase sempre, o lado bom e justiceiro da metade má e criminosa. À esquerda, esta realidade é particularmente evidente, diabolizando-se inequivocamente os israelitas e glorificando-se a justeza de uma «causa árabe» cuja dimensão «genérica» jamais é explicada, para além da oposição, nem sempre racional, ao inimigo americano. À direita, o inverso: a assumpção do universo islâmico como factor de instabilidade e a glorificação entusiástica do carácter higiénico das bombas que o Estado hebraico faz cair sobre o martirizado Líbano. Somente a direita mais extrema, simultaneamente anti-semita e anti-sionista, parece bloqueada. Mas o quadro não pode ser assim tão simples e, razoavelmente longe dos combates, será possível esboçar uma reflexão comprometida e razoavelmente serena. Embora mais dura, uma vez que impõe o questionamento de certezas – determinadas por credos religiosos ou pelos vestígios das velhas metanarrativas – que é muito mais cómodo aceitar como inabaláveis. Talvez seja, então, a vez de uma opinião inequivocamente laica tomar a palavra.

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        Deco: light or dark?

        Neste momento nada me move contra a Deco, a «Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor». Muito pelo contrário: trata-se de uma organização de utilidade e à qual muitos cidadãos recorrem em desespero de causa, quando têm problemas que a simples eficiência do vendedor de televisões, a comprovada simpatia do mecânico do automóvel ou a bondade da funcionária das finanças não possam resolver. Aliás, já fui assinante das revistas Proteste e Dinheiro & Direitos que a Deco edita, e só deixei de o ser pelos motivos absolutamentes supérfluos que se podem depreender daquilo que digo mais abaixo. Mas a Deco mantém também algumas práticas que me parecem pelo menos discutíveis.

        Não falo das questões meramente estéticas, que aliás não serão de somenos. Os seus e as suas porta-vozes, vestem todos, absolutamente todos, fatos domingueiros ou saias-e-casaco de baptizado que mais parecem uniformes. E eu não gosto de uniformes. Além disso, as suas publicações têm sempre um grafismo espalhafatoso e ultrapassado, como a publicidade das festas do Santo Padroeiro (para além do hábito estranho de analisarem, muitas das vezes, produtos descontinuados). As campanhas para angariação de sócios, por sua vez, oferecem brindes de quermesse inenarráveis que apresentam como fantásticos gadgets. Mas admito que tudo isto seja irrelevante, resultado da mania parva de tentar meter beleza naquilo que dela não carece para funcionar. Agora o que já me parece bastante discutível é que a Deco não promova campanhas públicas relacionadas com as úteis descobertas que faz, que não divulgue com clareza os nomes das marcas e das empresas prevaricadoras, que disponibilize informação actualizada apenas a sócios pagantes. Esta consideração da defesa do consumidor como uma irrelevância enquanto movimento social seria pouco grave se por aqui existissem outras organizações e movimentos de cidadãos capazes de agirem, em alguns casos, através de iniciativas directas de denúncia pública e de boicote. Assim não sendo, limitamo-nos a uma defesa por intermédio de formulários, requerimentos e cartas registadas com aviso de recepção, a qual, em certos casos, será muito insuficiente. Gostaria de ver a Deco com menos gravatas e mais acção, sinceramente. Até me fazia sócio.

        PS – Escrevi ontem este post e hoje mesmo o Público fala da «relação empresarial de subordinação» que a Deco mantém com a sociedade luxemburguesa com fins lucrativos Euroconsumers SA, a qual detém também três quartos do capital da empresa que gere as revistas da organização. O título da notícia é: «Tribunal italiano exclui pareceiros da Deco da lista das associações de consumidores». À atenção dos cidadãos. (20/07/2006)

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          Samir Kassir e a desgraça árabe

          Fotografia de Ramzi Haidar

          Em 2005 Samir Kassir (سمير قصير em árabe) foi assassinado em Beirute aos 45 anos de idade. Professor universitário, jornalista e historiador, filho de um palestiniano-libanês e de uma síria, possuía dupla nacionalidade franco-libanesa e considerava-se essencialmente «um árabe laico», não alienado a uma cultura estrangeira e, estruturalmente, sem qualquer vontade de eliminar aqueles que não pensavam como ele. Enquanto activista de esquerda bateu-se pela independência da Palestina e pela implantação da democracia no Líbano e na Síria, sendo o autor de Considerações Sobre a Desgraça Árabe (Cotovia, 2004), um livro transparente e dramaticamente otimista, radicalmente crítico da deriva totalitária e obscurantista que vem dominando o mundo árabe, e que, tendo provavelmente servido para assinar a sua sentença de morte, acaba de ser editado em Portugal.

          Nele se aborda o grande impasse no qual todas as sociedades árabes se encontram, enunciando os seus traços mais dramáticos: uma enorme taxa de analfabetismo, disparidade entre os imensamente ricos e os desesperadamente pobres, sobrepovoamento das cidades, desertificação das províncias, estabelecimento de padrões espúrios de intolerância, um crescente isolamento em relação ao resto do mundo. Aos quais se associa a intervenção coligada dos governos autoritários e dos dignitários religiosos que as dominam, a qual – com o apoio dos novos meios de comunicação, e entre eles o da estação de televisão Al-Jazira – trocou a formulação de políticas no sentido da resolução dos problemas pela aceitação de crenças messiânicas que deles desviam as atenções. E que são frequentes vezes apresentadas como parte de um legado histórico que Kassir, com um grande detalhe, mostra ser inexistente. Lembra, por exemplo, que a visão da jhiad bélica, encarnada na figura do istichhadi – aquele que pede o martírio – «só tem um verdadeiro antecedente na cultura árabo-muçulmana, na seita xiita (mas não árabe) dos Assassinos», fundada em 1090 por Hasan ibn al-Sabbah. Facto que uma grande parte dos muçulmanos, bombardeada pela propaganda radical e pelas prédicas de numerosos imãs, simplesmente desconhece.

          Para muitos dos defensores da ordem obscurantista e do milenarismo mórbido que presentemente dominam esse universo múltiplo que querem transformar em uno – e para os seus complexados parceiros ocidentais, que fecham os olhos à barbárie considerando-a um aliado táctico na luta contra a globalização capitalista – falar hoje de modernidade árabe constituiria também uma quase «blasfémia intelectual». Porém, o próprio conceito de modernidade possui, tal como Samir Kassir procurou provar, uma tradição no mundo árabe, não sendo de forma alguma a expressão de um mal, de origem ocidental, diante do qual se impõe apenas a mais violenta das rejeições.

          Kassir anotou ainda, finalmente, que apesar do cerco existe uma saída, tal como existem forças capazes de procurá-la. Sublinhou assim a necessidade de «recusar Huntington» e a ideia de uma oposição violenta entre «eles» e «nós», mas também a importância de «não esquecer Lévi-Strauss», afastando a consideração de qualquer «civilização» como «superior» ou como «decadente», e aceitando sempre que «a humanidade é una, pois deriva de um fundo antropológico comum». A forma como o autor fechou o livro é um apelo que resulta particularmente dramático em função daquilo que lhe aconteceu poucos meses depois: «Que os árabes abandonem o fantasma de um passado inigualável para encararem por fim, de frente, a sua história. E, um dia, para lhe virem a ser fiéis.»

          PS – Quando do assassinato de Samir Kassir, Alain Gresh transcreveu no Le Monde Diplomatique, onde Samir colaborava desde 1981, as seguintes palavras de Elias Khoury: : «Je voudrais dire à ton assassin que le jour est proche, qu’il ne réussira jamais à tuer la liberté et la parole, sinon en nous tuant tous. Car les mots fabriqueront leurs nouveaux auteurs, la vie fleurira dans les champs, les cimetières se transformeront en portails pour la liberté». Durante o seu funeral cada um dos presentes exibia como arma simbólica uma caneta.

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            Campanha anti-Alegre

            Distingo Manuel Alegre – por muito que dele se possa discordar, e eu discordo em muitas coisas, um dos respeitáveis fundadores da democracia portuguesa – do movimento que à sua volta foi criado durante as últimas presidenciais. A maioria do PS, subjugada até ao pescoço pelos exercícios de aparelho, pelas perigosas ligações de influência, pela mais abjecta despolitização, não percebeu, ou prefere não perceber, nada do que se passou, continuando entretanto, obstinadamente, a fazer frente a ambos. Já os ataques do Bloco de Esquerda, há dias intensificados, possuem uma natureza diferente. Eles reflectem, de alguma maneira, a distância que se tem vindo a estabelecer entre o Bloco original, o «de todas as cores», e aquele que agora conhecemos. Para o primeiro, que de certa maneira já pertence ao passado, o milhão e tal de pessoas, imersas em nebulosas mas sinceras expectativas, que apoiou Alegre, seria um aliado natural, de capacidades dinâmicas a explorar na busca de «outra política» face à gestão neoliberal desenvolvimentista promovida pelo «grande centro». Para o actual BE, que concentra a sua respeitável actividade nas laboriosas iniciativas parlamentares e em campanhas eleitorais personalizadas, ele parece-se mais com um concorrente no terreno. Julgo pois haver aqui um problema qualquer de comunicação. Ou então existem escolhas que tornam esta cada vez mais difícil.

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              A eternidade a 750 graus Celsius

              Em declarações à TSF o padre Vaz Pinto considerou normal que o Vaticano tenha decidido agora passar a incluir a leitura de jornais, a navegação na Internet e a televisão em excesso como pecados que têm de ser relatados em confissão auricular. Não tanto pelo seu «uso», admite, mas antes pelo imoderado «abuso» do qual serão constante objecto (aceitemos ainda que possa existir um abuso moderado de tonalidade apenas semi-concupiscente), o qual fará com que se deixem de lado «coisas mais importantes: a mulher, os filhos, o desporto, a cultura, o serviço social e por aí fora». Não sei ao que se refere VP quando fala de um certo «e por aí fora». Ou se as mulheres que abandonam os homens para se passearem por pecaminosas mailboxes, ou pelo universo aviltante dos blogues, sofrerão de idêntica maldição. Por mim, que recomendo insistentemente aos meus alunos a leitura de jornais, e lhes aponto inúmeras vezes, como material de referência documental, programas televisivos e sites da Internet, estarei inapelavelmente condenado a viver a eternidade nos tórridos domínios do decaído Belzebu.

              Depois de escrito – Não terei outras respostas a estas questões senão aquelas que me possam ser sopradas ao ouvido pelo Deus dos romanos, mas será que tais pecados terão efeitos retroactivos? e incluirão atitudes profundamente anti-sociais como passar tardes inteiras no cinema, a ler romances com mais de 500 páginas, a ouvir um ciclo inteiro de óperas de Wagner ou a olhar para determinado pormenor de um quadro de Vermeer? e afectarão eles os milhões de idosos que têm por única companhia a televisão ou um exemplar gasto pelo uso do jornal local? e serão abrangidos os jornais desportivos? e também as longuíssimas bençãos urbi et orbi transmitidas por diversos canais em simultâneo? e a Missa do Galo? e o Preço Certo em Euros?

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                Selva manual

                Apesar dos inevitáveis erros e do grau de incerteza que uma escolha entre diferentes leituras pode sempre conter, a decisão do governo no sentido de centralizar a escolha dos manuais escolares – atribuída nas últimas décadas a cada uma das diferentíssimas escolas, à competência sempre irregular de muitos dos seus docentes, às todo-poderosas influências comerciais das editoras – será positiva. Desde que não se aproxime da velha prática estado-novista do livro único, o que, bem vistas as coisas, a pluralidade essencial do tempo neste lado do planeta por certo impedirá. Permitindo um mais criterioso reconhecimento dos conteúdos e da qualidade pedagógica dos materiais, a medida poderá corrigir assim um dos efeitos nefastos da «regionalização no terreno». Ou, pelo menos, espera-se que assim aconteça.

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                  As pedras da calçada, ainda

                  Força já o bocejo a lengalenga sobre a impossível analogia que podemos estabelecer entre a rebelião estudantil francesa que se desenrola «sem horizontes definidos», e aqueles combates em redor de 1968 «que invocavam utopias futuras» (palavras de um daqueles invariavelmente seguríssimos textos dominicais de Mário Mesquita). Claro que a distância entre os dois momentos é enorme, como enorme é a separação abissal – ou «abismal», tal qual escreve e vulgariza a novilíngua jornalística – que distingue o actual meio estudantil daquele que existia há quatro décadas atrás (distância muito maior, sem dúvida, do que aquela que separa actualmente as realidades e as expectativas dos estudantes universitários franceses, portugueses ou mexicanos). Mas parece continuar sem se reconhecer a existência de um estado juvenil de «prontidão para a revolta», que, sendo historicamente recorrente a partir do pós-guerra, tem funcionado sempre como expressão de um profundo mal-estar e sinal de uma vontade de mudança tão intensa quanto mobilizadora. E que não é um simples caso de polícia.

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                    Folclore regional

                    caldo verde
                    Fala-se de novo em regionalização e vale a pena reparar nas tentativas para, aqui ou além, devagar ou mais apressadamente, às claras ou recorrendo a subterfúgios, reerguer aquilo que em referendo, num fugaz assomo de colectiva sageza, a maioria dos portugueses recusou. Porque a regionalização da qual nos falam não é a necessária descentralização, mas sim a criação de novas centralidades regionais. Com a agravante de, num país em estado de óbvia indigência na qualificação política e técnica dos quadros políticos locais, essa eventualidade reforçar os poderes de quem nem para gerir convenientemente uma pequena junta de freguesia – com todo o respeito para com as pequenas juntas de freguesia – possui muitas vezes visão e capacidades. Naquela que se imagina ainda a terceira cidade do país – contando com a concentração urbana e o crescimento demográfico, talvez seja, de forma optimista, a oitava ou a nona – sente-se particularmente esse drama. Há anos, muitos, que uma cidade triste e deprimida como Coimbra – cujo amor-prórpio é apenas ciclicamente reiventado por scholars e estudantes à procura de referências identitárias – se vê gerida de forma autista, kitsch e, num certo sentido, esquizóide. Autista porque, cidade de fortes tradições democráticas e de abertura ao mundo, tem sido governada de forma essencialmente anti-cosmopolita e fora de uma efectiva cultura da participação. Kitsch porque lhe definem constantemente horizontes culturais a partir do mais provinciano mau-gosto. Esquizóide porque a todo o momento lhe indicam a repetição ad infinitum, visível sinal do seu atraso, como prova provada da grandeza do mundo. Seria então com gente responsável por tais desvarios, ou por aquela que preludia outros, na eventualidade com acrescidos poderes, que seguiria avante a regionalização de todos os perigos. Na «cidade dos doutores» como em muitos outros locais mais ou menos plebeus deste país de magnos problemas e tão distraídos cidadãos.

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                      Voz do povo

                      Numa nota de imprensa escrita em 1947 pelo SNI de António Ferro, proclamava-se ser pelo folclore «que um povo reencontra o potencial poético característico da sua raça na sua forma mais cristalina e pura». O regresso em força, aos ecrãs televisivos, aos palcos das praças, aos desfiles alegóricos, às políticas culturais de alguns municípios, do folclorismo mais artificial, das cantadeiras mais aberrantes, do azedo arroto a chouriço, caldo verde e «boa pinga», assusta. Já repararam nele? Na forma como estão de volta o acordeão, os ferrinhos, a pandeireta? Como se insinuam outra vez, mostrando ao povo que o povo existe e, a cantar e a dançar, não deve querer ser senão povo? É provável que este retorno ao passado tenha alguma coisa a ver com uma recuperação da rusticidade – e do kitsch que lhe é frequentemente associado – consubstanciada na presidência saloia que agora se inicia.

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