A irritação crescente das actuais autoridades iraquianas, e a preocupação dos seus extremosos patronos, perante a gravação-pirata da execução de Saddam, provêm, essencialmente, do facto daquilo que se presumia ser o registo de um mero apagamento da história haver dado lugar a um manifesto contra o horror e a desrazão da pena capital. As autoridades chinesas também devem ter ficado um tanto ou quanto agastadas com o ruído à volta do tema. Resta saber se, nos assépticos corredores da morte das penitenciárias do lado de lá do Atlântico, as coisas se passarão dessa forma tão branca, sedada e silenciosa que costumam descrever-nos.
«Não deverá surpreender, afirmou certa vez um antigo, que o acaso possa exercer tão grande influência sobre nós, uma vez que vivemos justamente do acaso. A quem não tenha dedicado toda a sua vida a um único objectivo, torna-se impossível dispor convenientemente das acções individuais. Quem não disponha de uma concepção única do todo jamais poderá ordenar rigorosamente as partes.
Para que servirá afinal fornecer a alguém a paleta de todas as cores, se esse alguém não souber o que pintar? Ninguém será capaz de prever toda a sua vida e somos incapazes de viver de outra forma que não seja por parcelas. Afinal, o archeiro deve conhecer primeiramente o seu alvo e só depois acomodar a mão, o arco, a corda, a flecha e os movimentos.
Nunca existirá um vento favorável para aquele que não sabe a que porto se dirigir. Somos todos apenas pedaços, e de uma textura tão informe e diversa que cada peça e cada movimento fazem o seu próprio jogo. Por isso encontramos, na relação com os outros, uma distância tão grande quanto aquela que os outros encontram na sua relação connosco.»
Podemos, como sempre, repetir a receita de Carlos. Ou adiar. Só por mais um ano.
Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.
É dentro de você que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.
Sem a expectativa de uma surpresa, mas esperando intimamente enganar-me, percorri hoje as páginas oficiais na Internet do PCP e do Bloco de Esquerda. Tão empenhadas na denúncia da política americana para o Iraque, nenhuma das organizações inclui ali uma palavra sobre a execução de Saddam Hussein, sobre a infâmia absoluta da pena de morte, sobre as consequências negativas para a paz na região – e para o próprio ajuste de contas com a história – que este acto bárbaro irá inevitavelmente suscitar. Preocupadas quase exclusivamente com o seu lugar simbólico na política autárquica e na actividade legislativa, ambas mostram, também por este indício, como para além da previsibilidade das suas agendas e das bandeiras do momento habitam hoje um deserto de causas. Como outras, igualmente esquecidas ou apenas ignoradas, até a campanha pelo sim no referendo sobre o aborto permaneceu no seu discurso, durante anos, em estado de semi-hibernação. O drama é que esse deserto tem secado tudo aquilo que poderia crescer fora dele. A indignação profunda perante a iniquidade, aquela que se não pode deixar atar pela lógica da oportunidade política, da contabilidade miserável das sondagens ou da ficção do pequeno poder, vive abandonada. Este caso é apenas um indício.
Pós-nota: tomo como minhas as palavras directas do Luís Mourão
Segundo o Yorkshire Post, a directora de uma escola inglesa da região, preocupadíssima com a sensibilidade religiosa dos seus pequenos alunos, maioritariamente provenientes de famílias muçulmanas, resolveu retirar da biblioteca os livros que mencionavam a história de Prático, Heitor e Cícero, os conhecidos Três Porquinhos. Sempre achei as peripécias destes bichos humanizados – concebidas no século XVIII mas definitivamente popularizadas, a partir de 1843, com as Nursery Rhymes and Nursery Tales de James Orchard Halliwell-Phillipps – uma coisa desenxabida, piorada depois na versão moralistae um tanto apatetada de Walt Disney. O mais interessante da história era sem dúvida o seu vilão, o Lobo Mau, que surgia como referente simbólico de um dos grandes medos que durante séculos afligiram os europeus. Mas aquilo que terá incomodado a senhora foi antes a referência subliminar – que deveria ser omitida em nome de uma maneira servil, e um bocadinho patológica convenhamos, de entender a diversidade cultural – a qualquer coisa de comestível. Como carne de porco, por exemplo.
As canções de vinte e dois minutos
não existem mais. As saias-calça de bratzuanza
desapareceram. Os sabonetes Ipogorum
não se encontram. Os pneus das naves não são mais
feitos de carbo-chips. Ninguém usa ventosas
na roupa para andar de rodaloz. Os painéis
de leitura já não abrem com o clique de voltagírio.
E as casas ai as casas deixaram de cheirar
a mengapuzes assados.
«Je suis d’un autre pays que le vôtre, d’un autre quartier, d’une autre solitude. Je m’invente aujourd’hui des chemins de traverse. Je ne suis plus de chez vous. J’attends des mutants.
[…]
Le désespoir est une forme supérieure de la critique. Pour le moment, nous l’appellerons ‘bonheur’, les mots que vous employez n’étant plus ‘les mots’ mais une sorte de conduit à travers lesquels les analphabètes se font bonne conscience.» Léo Ferré, La Solitude
A notícia chega de Vila do Conde e, como sabemos, apesar de situada numa região movimentada e de elevada concentração demográfica, Vila do Conde não é propriamente São Paulo. Mas o crime tomou ali uma configuração particularmente preocupante. Na zona industrial da Varziela, onde existe um grande número de lojas de imigrantes de origem chinesa, estas têm sido objecto de uma série de roubos e extorsões à maneira da velha Little Italy de O Padrinho II. Parece que os chineses que se dedicam ao pequeno comércio são, maioritariamente, para além de grandes trabalhadores, tão ciosos do seu dinheiro que preferem guardá-lo consigo a depositá-lo no banco ou a transaccioná-lo sob a forma de cheques ou de cartões de crédito. O resultado é tornarem-se alvos preferenciais de quem se dedica a apropriar-se daquilo que não lhe pertence. Foi justamente o que percebeu uma das quadrilhas da região, agora desmantelada, a qual ao longo de algum tempo se dedicou a espiar os hábitos diários dos chineses e a adaptar a sua mão-leve a esses hábitos, entrando-lhes nas casas enquanto se encontravam nas lojas. O que não deixa de parecer um tanto estranho, para a sociedade quase paroquial na qual ainda há pouco acreditávamos habitar, é que essa quadrilha era composta por imigrantes albaneses. Bem-vindos pois ao presente!
Pós-escrito – Parece-me claro que este post não integra intenções xenófobas. Constata apenas a emergência de uma forma de sociabilidade que ainda aparece entre nós – sugestionados durante décadas pela conversa dos «brandos costumes» – como uma originalidade.
«De todas as coisas, umas dependem de nós e outras não. Aquelas que dependem de nós são as nossas opiniões, os nossos movimentos, os nossos desejos, as nossas inclinações, os nossos ódios. Numa palavra, todas as nossas acções. Aquelas que não dependem de nós são o corpo, os bens materiais, a reputação, as honras. Numa palavra, tudo aquilo que não dependa das nossas acções.
As que dependem de nós são livres pela sua própria natureza, nada pode impedi-las ou impor-lhes um qualquer entrave. Aquelas que não dependem de nós permanecem frágeis, escravas, dependentes, sujeitas a mil obstáculos e inteiramente estranhas.
Lembra-te, pois, que se tomares como livres as coisas que são por natureza escravas, e como próprio de ti aquilo que dependa de outro, apenas encontrarás barreiras, sentir-te-ás permanentemente aflito, perturbado, e queixar-te-ás a todo o instante dos deuses e dos homens.
Ao invés, se acreditares ser teu apenas aquilo que é próprio da tua natureza, e estranho aquilo que pertença a outro, jamais te poderá alguém forçar a fazer o que não desejas, ou impedir-te de fazeres o que pretendas. Desta forma, não terás razões de queixa de ninguém, não acusarás quem quer que seja, nem mesmo que pela mais pequena coisa, pessoa alguma te fará mal, e não terás inimigos.»
De partida para a festa familiar e os comes do solistício (o meu não é de todas as culturas – é apenas meio-português – e exclui decididamente poemas à Virgem e ao Menino Jejuxe), leio no El País-em-papel de ontem uma crónica de Timothy Garton Ash. Só o título é um programa e um apelo à meditação diária: «Respeitar os crentes, não as crenças»:
«O ideal é que uma sociedade multicultural seja uma competição amistosa e aberta entre cristãos, sikhs, muçulmanos, judeus, ateus e até partidários do ‘dois mais dois igual a cinco’, para ver quem é capaz de melhor nos impressionar com o seu carácter e as suas boas obras.»
Não apenas hoje ou um dia destes. Mas hoje e sempre. Esta noite também, portanto.
O Dia D, suplemento de economia editado pelo Público que pode ser folheado por leitores normais, costuma oferecer na última página a explicação do «dia mais longo» da vida pessoal – ignore-se agora a redundância – de certas e determinadas pessoas. Na escolha dos declarantes, o denominador comum reside na sua condição de figuras mais ou menos públicas. Como seria de esperar, as respostas são muito diversas, mas, invariavelmente, as piores são aquelas fornecidas por políticos e executivos directamente ligados ao universo empresarial. Por muito jet-lag que experimentem, números do The Economist que citem e tardes em Wimbledom ou Roland-Garros que tenham passado, raramente declaram algo de mais emocionante do que um dado dia no qual precisaram tomar, em poucas horas ou mesmo em minutos, decisões gravosas envolvendo um grande número de zeros. Não sei se os nossos gestores estarão entre os mais aborrecidos do mundo – insuspeitos, tal como os portugueses, de influências calvinistas, os japoneses serão, sem dúvida, muito piores – mas jamais nos convencerão a olhá-los como modelo.
Epicuro, 341–270 a.n.e. (Carta a Meneceu sobre a Moral)
«O prazer é o começo e o termo de uma vida feliz. Com efeito, é ele que nós podemos reconhecer como o maior dos bens, conforme com a nossa natureza, é dele que partimos para determinar aquilo que é preciso escolher e o que devemos evitar, é a ele que, finalmente, recorremos quando nos servimos das sensações como uma das formas de apreciar todo o bem que se nos pode oferecer.
Ora, precisamente porque é o prazer o nosso principal bem inato, jamais deveremos procurar usufrui-lo na totalidade. Assim, existem casos nos quais nós renunciamos aos grandes prazeres se, para nós, deles resultarem o tédio e a preocupação. E poderemos mesmo considerar certas dores preferíveis aos prazeres sempre que, a partir dos sofrimentos que nos foram edurecendo ao longo dos anos, delas para nós puder resultar um prazer mais elevado.
Todo o prazer é assim, pela sua própria natureza, um bem. Mas prazer algum deverá ser procurado só por si. Paralelamente, a nossa dor é um mal, mas não deve ser evitada a qualquer preço.
Em qualquer caso, convém decidir sobre tudo isto comparando e examinando com atenção o que é útil ou nocivo, uma vez que, muitas vezes, agimos diante de um bem como se ele fosse um mal, e diante de um mal como se ele fosse um bem.»
Tenho um problema com Leonard Cohen. Ou, pelo menos, com a imagem de poeta intoxicado, de habitante da penumbra e de beatnick renitente que de Cohen fui construindo entre livros (Let Us Compare Mythologies, logo em 1956), discos soberbos ou um pouco menos, concertos ocasionais e fotografias a preto e branco invariavelmente tiradas em bares e quartos de hotel. O canadiano de negro sempre me fez acreditar que a vida é dura e que só nas mulheres – as que se amam, aquelas que passam ao longe, as que apenas nos sorriem – é possível encontrar algum consolo. O problema consiste em continuar a acreditar nele.