O fim da ilusão europeia

Enquanto lemos o ensaio Uma Grande Ilusão?, publicado pela primeira vez em 1996, baseado em palestras proferidas no Johns Hopkins Center de Bolonha e traduzido agora em Portugal, poderá surpreender-nos a capacidade de Tony Judt (1948-2010) para chegar, com vários anos de avanço, a conclusões hoje praticamente do domínio do senso comum. Naquela altura, o euroceticismo era dominado pela direita e o ideal de uma Europa política e economicamente unida ainda parecia constituir, pelo menos para a generalidade dos socialistas e dos social-democratas de esquerda, o fundamento de um futuro de prosperidade e de bem-estar social para a grande maioria dos cidadãos. Em Portugal, a proposta de uma «Europa connosco», utilizada pelo PS em 1975 para vencer as eleições para a Assembleia Constituinte, dera o mote para a projeção intramuros, por mais de vinte anos, dessa quimera de um continente unido, próspero e pacífico, no qual cada Estado deveria funcionar como peça perfeita de uma experiência eterna e de um todo harmonioso. No entanto, quando escreveu este texto, o historiador britânico desconfiava já da viabilidade desse projeto e, em consequência, do seu futuro.

Para fundar a sua desconfiança, Judt serviu-se então das armas fornecidas pela História, que, ao contrário da maioria dos políticos e dos economistas com voz pública, conhecia muito bem. Por essa altura preparava já Pós-Guerra, a sua obra mais importante, ou pelo menos a de maior êxito comercial e académico, dedicada ao percurso europeu a partir de 1945, e encontrava-se por isso em condições de fundamentar – ao contrário dos colegas de métier apostados em legitimar historicamente o mito da unidade – o caráter realmente recente, transitório, desigual e povoado de fábulas e mal-entendidos do desígnio de aproximação entre os Estados do continente. É com a explicação deste olhar que se ocupa ao longo dos três capítulos que este pequeno volume comporta: abordando no primeiro a criação dessa «grande ilusão» de unidade, apresentada como inevitável mas em larga medida ficcionada ou imposta pelas circunstâncias; tratando no segundo a adesão «à Europa», após a queda do Muro, dos países do leste, e a forma como ela serviu para ampliar a centralidade geográfica e económica da Alemanha e para esboroar o aparente equilíbrio continental; e ocupando-se no último, o mais pessimista dos três, com o regresso das velhas divisões que abalaram as perspetivas do sonho europeu, desembocando na crise que agora atravessamos. Que é também uma crise de confiança «entre iguais», entre irmãos que na realidade jamais o foram e nunca o serão.

Tony Judt mostrou-nos aqui que o programa da unidade europeia não foi propriamente, ao contrário do que contam as lendas que circulam em brochuras e se ensinam em cursos universitários, o resultado da iniciativa abnegada de um conjunto de visionários, provindo antes da coincidência de circunstâncias que tenderam a aproximar, momentaneamente, interesses na realidade muito diversos e a médio ou longo prazo incompatíveis. Por isso considerou que a Europa «é mais do que uma noção geográfica mas menos do que uma resposta», e que o seu futuro depende mais da aceitação da diferença do que da imposição de um modelo único ditado pelos Estados e pelas economias mais fortes. O curso natural das coisas tem vindo a provar-nos todos os dias como ele tinha toda a razão. E como aquilo que escreveu não era o desabafo de um cético ou o devaneio de um adivinho.

Tony Judt, Uma Grande Ilusão? Um ensaio sobre a Europa. Trad. de Pedro Bernardo. Edições 70. 150 págs. Versão revista de nota saída na LER de Setembro.

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