Não foi por acaso

Fot. Privatedanser

Muito se escreveu já sobre a frase do holandês que é presidente do Eurogrupo, pronunciada há dias, quando em entrevista concedida ao Frankfurter Allgemeine Zeitung recorreu a uma inaceitável analogia para se referir ao que julga ser a conduta dos países europeus do Sul: «Não posso gastar o meu dinheiro todo em vinho e mulheres e de seguida pedir a sua ajuda.» Faço um esforço para relevar aqui o caráter xenófobo e sexista destas palavras, centrando-me num outro aspeto, que transforma o episódio em algo bastante mais grave do que o seria uma frase infeliz, mas fortuita. Aliás, Jeroen Dijsselbloem, constrangido pelo escândalo a pedir desculpa, justificou-se com aquilo a que chamou a sua «habitual frontalidade», o que confirma ter dito algo que pensa.

Deixem-me recuar cinquenta ou sessenta anos. Até ao tempo em que a assistência pública no nosso país quase se cingia à prática da caridade. Era então costume os pobres baterem à porta das pessoas «remediadas» – raramente o faziam nas casas dos mais ricos, que temiam e de onde eram afastados – pedindo comida, roupa usada ou algum dinheiro. Por vezes, alguém lhes dava uma ou duas moedas de cinco escudos e juntava a recomendação: «mas veja lá, não o vá gastar todo em vinho». O próprio regime alimentava o flagelo do alcoolismo (ainda ecoava a campanha «beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses»), que atingia homens, mulheres e crianças em percentagens assustadoras e se havia tornado endémico. A figura do alcoólico tinha uma forte presença no quotidiano coletivo, sendo visto como uma espécie de demente. O indigente, esse era deixado à distância da esmola ou de um «tenha lá paciência».

Isto parece ter pouco a ver com a afirmação do presidente do Eurogrupo, mas tem. Na cabeça de pessoas como ele somos como o bêbedo pedinte, irresponsável, uma criança grande com quem toda a benevolência deve ser acompanhada de severidade. De facto, é bom perceber que o indivíduo pensa mesmo assim e não é o único a fazê-lo. Tem séculos, e herda-se, a ideia segundo a qual os habitantes do Norte asseguram esforço e trabalho – Max Weber associava-os à ética protestante, que valorizava o ascetismo e o amealhamento como instrumentos de Salvação extraterrena – enquanto os povos do Sul se entregam preferencialmente à festa e aos prazeres da vida. Muitos destes são os primeiros a aceitá-la, admitindo a existência de um estigma genético que condiciona a sua existência.

É claro que assim não é. A história ensina que as circunstâncias políticas, geográficas, climáticas, sociais, económicas e militares foram muitas vezes fator de desigualdade e de separação dos ritmos de desenvolvimento. Que, aliás, também se encontram também entre o Ocidente e o Leste, ou entre regiões dentro de cada Estado. Por sua vez, a industrialização e o crescimento do capitalismo, que só foram possíveis precisamente graças aos desequilíbrios entre as regiões que essencialmente consumiam e cediam mão-de-obra, enquanto outras se concentravam na produção de bens e na gestão do dinheiro, produziram fatores objetivos de desigualdade no domínio do desenvolvimento e da distribuição da riqueza. Mas esta realidade não alterou a natureza humana comum, nem reduziu a capacidade coletiva para atenuar a desarmonia.

As palavras de Dijsselbloem podem ter-lhe saído sem querer, mas não foram resultado de um acaso. Traduzem uma perceção das disparidades que não as situa como um resultado de escolhas económicas e políticas, mas numa espécie de essencialismo, diferenciando os «bons trabalhadores» dos outros, naturalmente madraços, destinados a servir e a viver sob tutela. Pensando o futuro da Europa e do mundo como algo que se resolve virando uns contra os outros, com cada um no seu lugar. Custa aceitar que foram os povos a colocar no poder gente tão preconceituosa e perigosa quanto esta o é. Paga pelos seus impostos para perpetuar a desconfiança.

Publicado em 25/3/2017 no Diário As Beiras

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