Convergência ou unidade?

Ao contrário do que acontece com a direita, que não mostra dificuldade alguma em esquecer as divergências sempre que está em jogo o núcleo elementar dos interesses e dos ideais que representa, na história e na mitologia da esquerda inscreve-se a bold a constante enunciação de uma unidade ao mesmo tempo desejada e impossível. Para além da ideal entrega comum à busca de uma sociedade mais justa, mais igualitária e do bem-estar para todos, a sua história é feita principalmente de separações e disputas, raramente de aproximações duradouras. Estas apenas foram possíveis, sempre com limites programáticos e temporais, em momentos nos quais a força de circunstâncias dramáticas ou de medidas urgentes se impôs, como aconteceu durante a República espanhola, a guerra contra o nazismo ou as lutas de emancipação nacional e social das décadas de 1960-1970. Mesmo a história do governo de Unidade Popular, no Chile de Allende, tantas vezes invocado como exemplo da cooperação possível das diferentes esquerdas, viveu esse drama.

Em Portugal, do Estado Novo ao 25 de Abril, no decurso do período revolucionário, e deste até ao presente, assim foi também. De forma mais ou menos intensa, mas sempre. A afirmação das clivagens dentro da esquerda, dos socialistas ao PCP e aos grupos com posições mais extremadas, fez sempre parte das etapas do combate político, opondo partidos, movimentos, tendências ou facções. Paradoxalmente, essa luta foi travada a todo o momento com o credo da unidade na boca. Uma unidade impraticável e inaceitável, porque desenhada em função da hegemonia pretendida por cada um desses partidos, movimentos, tendências ou facções, sempre zelosos da irredutível certeza das suas próprias convicções. Normalmente, depois da fugaz atração tudo acabava em divórcio, com litígios insanáveis e juras de eterno ódio. Na melhor das hipóteses, aqui ou ali com acordos tácitos frágeis, porque construídos sobre uma base de desconfiança ou de rancor. E, por tal forma, sempre abrindo o caminho ao triunfo de uma direita bem mais pragmática e despida de preconceitos.

Vem isto a propósito da divulgação, no início da semana que agora termina, da convocatória pública para a organização e o lançamento de uma «candidatura cidadã» às próximas eleições legislativas. Resultante da aproximação entre organizações e pessoas muito diferentes, como o Fórum Manifesto, o Partido Livre, a Renovação Comunista e muitos dos ativistas que lançaram o Movimento 3D e o Congresso Democrático das Alternativas, para além de pessoas sem qualquer vínculo organizativo, os seus objetivos são sem dúvida ambiciosos e carecem de muito trabalho e paciência. Todavia, estes não comportam qualquer propósito de «unir a esquerda» com base num programa detalhado e de sentido único. Aliás, se fosse esse o propósito o projeto seria contraditório em si mesmo, dando razão ao argumento dos que nele não se reveem: viria, de facto, não para unir, mas para dividir ainda mais. E estaria condenado a ser mais uma das vítimas da quimera paralisante de uma «unidade de esquerda» assente na irrealizável dissipação das diferenças. Tão exequível quanto a tentativa, mil vezes testada e outras tantas falhada, de descobrir o elixir da eterna juventude.

A diferença, a meu ver substantiva, que distingue e sustenta esta proposta, encontra-se no facto dela insistir na convergência do possível e não naquela fátua ideia de unidade. Uma convergência voltada para a «construção de uma alternativa, com soluções praticáveis que mobilizem as energias democráticas do país e sejam capazes dos diálogos possíveis». Esta principia pela aceitação da diferença entre os próprios setores que integram este movimento, apoiada na busca partilhada daquilo que é essencial para impor uma viragem no atual processo de destruição do país e da vida dos portugueses. Apresentando, em primeiro lugar, o seu próprio programa político e a suas próprias propostas, que deverão ser referendadas pelos cidadãos eleitores, mas abrindo-se à possibilidade de procurar depois – se tal será possível ou não, essa é uma questão a ver na devida altura – soluções objetivas de governabilidade para o país. Sem a presunção de criar um novo espaço de «donos da esquerda» e sem cair no devaneio de uma unidade cheia de bandeiras, de princípios e de declarações de intenção, mas ao mesmo tempo incapaz de atingir aquilo que é dramaticamente urgente: libertar Portugal da direita, fugir ao abismo da austeridade, introduzir a decência no território da governação e dar alento às pessoas. Ou, por outras palavras, mudar, mudar rapidamente e mudar para melhor.

Versão revista e ampliada da crónica publicada no Diário As Beiras.

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