Problemas à esquerda (1)

Naquele inverno de 1999-2000 participei em algumas das primeiras iniciativas do Bloco de Esquerda. Numa delas tive uma experiência singular: um almoço, entre duas sessões de trabalho, partilhado por largas dezenas de pessoas, ativistas de diversas origens, muitos deles a viver ali reencontros tantas vezes adiados, que durante a refeição se esforçaram visivelmente, algumas com aparente êxito, outras de maneira desajeitada, por contornar tudo aquilo que pudesse recordar as antigas desavenças e as clivagens um dia consideradas insanáveis. Sensivelmente as mesmas, vindas ainda das querelas dos anos 60 e 70, que durante décadas haviam azedado relações pessoais e políticas, fixando-se nas posições irredutíveis, presas a princípios e idiossincrasias mas quase sempre com zero em sentido prático, que tinham condenado a «esquerda da esquerda» à irrelevância. Agora, no entanto, tudo era possível: o luto da revolução falhada parecia feito e aquele tempo configurava-se como de viragem e superação, voltado para a criação de uma experiência realmente nova.

Sabia-se da existência de diferenças importantes – nomeadamente aquelas que pouco antes ainda separavam a UDP, o PSR e a Política XXI (o futuro Fórum Manifesto) – mas pensava-se que dali resultaria algo de substancialmente diverso, em condições de unir o essencial, de dar coerência a uma certa esperança e de inaugurar uma outra forma de intervir, mobilizar e projetar futuros. E, de facto, assim pareceu acontecer durante algum tempo, com a afirmação pública de uma forma de fazer política geradora de novas possibilidades, pelas quais, aliás, parte importante do «povo de esquerda» de há muito vinha esperando. Não se tratou apenas de propor «causas fraturantes», então, convém lembrá-lo, rigorosamente omitidas pelo PS e pelo PCP – algumas das quais viriam, aliás, a permitir avanços societários significativos no plano legislativo –, mas de combater o dogmatismo, o controleirismo e uma certa nostalgia daquela esquerda caída com o Muro de Berlim. Os mesmos que haviam afastado da intervenção política muitos homens e mulheres, principalmente jovens urbanos e da então crescente classe média, posicionados à esquerda dos socialistas, que deparavam com problemas e expectativas inteiramente novos para os quais as formações políticas existentes não pareciam oferecer resposta.

Foi em larga medida a resposta dada pelo Bloco a esta necessidade sociológica e a esta esperança política a determinar a crescente simpatia da qual foi objeto, o seu êxito eleitoral e a visibilidade mediática que rapidamente conquistou, nada condizentes, aliás, com a sua reduzida capacidade de organização, o seu limitado número de quadros e a linha política ainda pouco clara que ia definindo. Tal jamais poderá ser plenamente provado, mas estou convencido de que, em boa parte, o cimento desse êxito foi fornecido, antes ainda da entrada de uma nova vaga de militantes e simpatizantes imunes à nostalgia de um passado revolucionário perdido, pela marca doada pelas tendências orgânica e ideologicamente menos rígidas. Não seria o marxismo-leninismo suavizado e obreirista da antiga UDP, apesar desta representar desde o início o setor mais «profissional» e com maior capacidade de militância, a conquistar a importante área do eleitorado que fez o Bloco projetar-se para além da reunião inicial. E sê-lo-ia ainda menos o maximalismo grupuscular da entretanto emergente Ruptura-FER (hoje autonomizada como Movimento Alternativa Socialista). Aquilo que seduziu tanta gente nova e uma parte da classe média que pouco tinha já a ver com as utopias radicais da transição democrática de 1974-1976 foi realmente a tradição de informalidade e ousadia inicialmente proposta pelo PSR, e foi também a presença daquele setor que, sem dogmatismos mas também sem inocência, pugnava por uma outra forma, talvez mais pragmática e adaptada à mudança do mundo, de «ser esquerda». Esse era sobretudo o lugar dos ativistas do futuro Manifesto, visivelmente minoritários na relação interna de forças, mas em larga medida responsáveis pela projeção pública do Bloco como partido-outro, marcador de uma esquerda moderna, não dogmática e regeneradora. Como simpatizante e compagnon de route do Bloco desde o seu início, e próximo ao longo de todos estes anos de muitas pessoas que também o foram ou continuam a ser, julgo poder garantir esta influência, responsável ainda, em larga medida, pela «boa imprensa» que ajudou o partido a projetar-se.

Por isso, tentar desvalorizar, como o estão a fazer alguns dos responsáveis do Bloco, a saída do partido do Fórum Manifesto, resumindo-a – na péssima tradição da pior esquerda de denegrir para derrotar – a «quatro ou cinco pessoas» que decidiram seguir um caminho diferente, de forma implícita ou explícita considerado de «previsível» traição ao próprio partido, não constitui apenas um gesto defensivo e não-democrático, que esquece quem se tem vindo a afastar sem nada dizer e se destina a nortear militantes confundidos, a diabolizar algumas pessoas e a afastar o debate de questões urgentes e sensíveis. É sobretudo um erro político grosseiro, que afastará simpatizantes e condenará o Bloco de Esquerda, a curto prazo, a uma gradual redução política a esse «menor denominador comum», resultante da soma aritmética dos antigos grupos fundadores, do qual há década e meia atrás se dera o tiro de partida para uma nova e edificante experiência. Tal significará um retrocesso da esperança, justamente quando mais precisamos dela. O que é mau, muito mau. [continua]

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    Democracia, Olhares, Opinião.